O Porto não é uma cidade fácil, requer manhas e muita paciência para dela nos sentirmos habitantes, para passarmos da camada superficial das impressões primeiras, para vencermos a resistência teimosa das pedras e da neblina, para entendermos a sua música, tão entranhada, os seus gestos, tão desabridos quanto francos - para sermos capazes, enfim, de escrever algo mais do que um cartão postal de conveniência.
A imagem turística da cidade, com os seus lugares de eleição instantâneos, reduzidos ao slogan e à frase feita, é a inimiga primeira da minúcia que o Porto nos exige. A outra ameaça é o excesso de familiaridade, a confiança desmedida que já tudo conhece e que postula entre nós e a cidade uma continuidade total onde se erradica o espanto e a surpresa. A terceira ameaça reside no amortecimento das emoções, na escuta flácida e desatenta dos gemidos da urbe, nessa atitude de indiferença deslizante e difusa que nos confunde com o tédio.
Sou um homem feliz: consegui assistir ao último espectáculo de “Esta é a minha cidade e eu quero viver nela”, uma coprodução da companhia Teatro Vestido com o Teatro Nacional São João, obra que nos reconcilia com o teatro, a vida e a cidade. Nuns alucinantes 160 minutos, grupos de 15 espectadores rodavam, por vezes correndo, calçada acima, calçada abaixo, entre sete cenas, todas ao ar livre, protagonizadas por sete excelentes actores que nos falavam das ruas da freguesia da Vitória, das suas gentes, das suas falas, queixumes e sonhos. Ancorado num amplo trabalho antropológico (transparece o infatigável labor de escuta activa das gentes da Vitória, num texto que concilia a densidade poética com o "statement político"), a peça questiona ainda as fronteiras entre o lado de lá (dos criadores e actores) com o lado de cá (dos espectadores e habitantes), mostrando-nos o que habitualmente não queremos ou sabemos olhar (um quarto de hospedaria; um lavadouro onde se concentram toxicodependentes; uma barbearia tradicional; portas e janelas, ângulos inusitados sobre o Douro, a Sé, as Igrejas; estórias que poderiam ser as do Aniki-Bóbó; pobreza e grandeza).
De repente, transportado naquela viagem, senti que uma outra cidade se me desenhava na mente. Conhecia e não conhecia aquela cidade; era e não era o “meu” Porto; ora me surgia familiar, ora me parecia tão distante como um nome mágico e inacessível. Lembrei-me, então, do célebre texto de Michel Foucault (“Espaços Outros”), no qual descreve certas cidades enquanto heterotopias, condensação de camadas sobrepostas e contraditórias (a cidade dos vivos e dos mortos, dos sãos e dos enfermos…), como nas placas das velhas ruas onde, escavando, se poderá encontrar um nome antigo e outro nome ainda mais distante e outro ainda, até só restar um só eco ténue. Ruas onde vemos passar os outros, para nos vermos passar a nós; ou onde nos vemos nos outros; ou onde os outros nos vêem; ou onde nos vemos como outros.
Em ciência fala-se de “serendipidade” (tradução possível de “serendipity”) para nos descrever o processo de por vezes encontrarmos aquilo de que não estávamos à espera. Senti nessa noite a serendipidade de uma cidade que me esbofeteava com o seu nervo e o seu sangue. Se respeitar essa errância, se olhar para ver e não apenas para tomar nota, como dizia Sophia a propósito da “activista cultural”, talvez no futuro seja capaz de cumprir o desígnio do poeta helénico Konstantinos Kavafis: “A cidade te seguirá”. Conseguirei alguma vez merecê-la?