Histórias felizes de "retornados"

Viveram em África e regressaram a Portugal ainda adolescentes, como o narrador do romance "O Retorno". Mas as histórias de Fernando e Cláudia são de adaptação, não de estigma. Ambos regressaram a África

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Tanto Cláudia como Fernando ainda não leram "O Retorno" (2011), de Dulce Maria Cardoso. Já ouviram falar do romance que conta o drama de Rui, um adolescente que, como em tantas outras famílias portuguesas, viu-se obrigado a deixar África em meados dos anos 70. Não leram e talvez não se identifiquem com Rui — as histórias deles são de adaptação, e não de estigma. Histórias raras, talvez. Ambos regressaram, na vida adulta, ao continente africano. Um duplo retorno.

A história de Rui só aparentemente se assemelha à de Cláudia e Fernando: os três deixaram África para trás ainda jovens, confrontando-se com um Portugal que mal conheciam. Diferem, contudo, os contextos que emolduram a experiência de cada um dos três. E, por extensão, a narrativa que cada um tem para contar.

Fernando Carvalho, 51 anos, veio para Trás-os-Montes em Junho de 1974 apenas para passar férias com a família. A estada provisória acabou por transformar-se em definitiva. Talvez por isso, e pelo facto de ter passado o primeiro ano com familiares — e não num hotel abarrotado, como sucedeu a Rui de "O Retorno" —, as suas memórias são "boas". Não há carpir de mágoas. Nem nostalgia ou saudosismo da vida suspensa que deixou na antiga Lourenço Marques. Um mero acaso profissional levou-o em 2007 de volta a Moçambique, onde Fernando trabalha como conselheiro económico da Embaixada e delegado da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP), em Maputo.

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Fernando Carvalho (ao centro) com os irmãos na praia DR/Arquivo pessoal

O retorno, duas décadas depois

A cientista Cláudia Fançony Videira, 29 anos, fez um percurso semelhante ao de Fernando, mas 20 anos depois. E a partir de Luanda. Quando chegou a Portugal, foi estudar numa escola em Caminha, "num meio pequeno mas muito acolhedor". Ao contrário de Rui, que, ao reingressar na escola na Lisboa dos anos 70, deparou-se com uma professora de matemática que o tratava por "um dos retornados", Cláudia tem boas memórias da adaptação ao ensino português em Viana do Castelo.

"Fui muito acarinhada, pelo que a adaptação foi muito rápida. Estudei desde o 6ª ano até ao 12º na mesma escola e contei com a orientação de alguns professores para a candidatura à universidade", conta Cláudia, que veio a tornar-se investigadora e a regressar a Angola há dois anos. Hoje trabalha como assistente de investigação e de laboratório pela Fundação Calouste Gulbenkian no Projecto Centro de Investigação em Saúde de Angola.

Era uma adolescente quando foi para Portugal com uma mochila às costas. E era um pouco mais nova do que Rui, a personagem de "O Retorno". Contudo, Claudia deixou Luanda em 1994, quase duas décadas depois do período conturbado da independência. Há portanto muitas diferenças entre estas duas partidas de África — uma ficcional, outra real. Mas é similar a sensação de ser transplantado numa terra que, para todos os efeitos, é estranha.

"Para ser sincera, a minha ida para Portugal foi um pouco contra a minha vontade. Apesar de ter vontade de experimentar novas aventuras, estava muito ligada aos meus amigos e, sobretudo, à família", revela Claudia num e-mail enviado ao P3. A cientista também enfrentou "algumas vezes" situações "desagradáveis" por ter regressado de Angola. Mesmo nos anos 90, o rótulo pejorativo dos chamados "retornados" não desapareceu.

Havia ainda "sentimentos mistos": por um lado, o frio de Caminha fez Claudia ter "uma sensação de acolhimento", porque o associou ao clima de Huambo, onde nasceu; por outro, "o sentimento de perda era imenso".

Não se recorda de nada que tenha trazido na bagagem. Não tem qualquer objecto que tenha trazido de África. Trouxe apenas uma mochila (a mãe disse-lhe recentemente, a cientista já não se lembrava) pois, em Luanda, "não tinha nenhuma roupa de frio".

"O Retorno" não é a única obra publicada nos últimos anos sobre aqueles que, estando em África aquando da independência das colónias, tiveram de embarcar às pressas para Portugal. Obras como "Caderno de Memórias Coloniais" (2009), de Isabela Figueiredo, e "Os Pretos de Pousaflores" (2011), de Aida Gomes, são outros exemplos de como a ficção reelabora a experiência de uma geração num contexto histórico. São vivências difíceis, de pessoas desenraizadas, alvos de rótulos e estigmas. Histórias que constituem quase sempre a regra, mas uma regra que tem excepções.

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