Quando os loucos sonham uma vila para a literatura
Há cinco anos, a conversão de uma igreja em livraria provocou a transformação de Óbidos numa vila literária. Em antecipação do Dia Mundial do Livro, que se celebra segunda-feira, regressamos à vila muralhada, onde o projecto se prepara para ganhar novos capítulos.
No coro de uma igreja agora devota ao culto da literatura, saem poemas rendilhados das mãos de Natália Santos. Curvada sobre o rebolo, de manta nos joelhos, Natália dança os bilros num S tranquilo, letra que em breve se juntará a outros abecedários e bijuterias, num mostruário que tem tanto de renda quanto de poesia. Afinal, ela é “a poeta rendeira”, diz com orgulho. Ainda menina, a mãe ensinou-lhe a técnica dos bilros na pequena aldeia de Peniche onde nasceu. Mas há muito que o mundo de Natália, de 71 anos, é feito de versos populares. Escreve quase todos os dias, compulsivamente há cerca de 30 anos. “Às vezes até adormeço com o papel na mão”, sorri docemente no alto da sua varanda sobre uma nave de livros. “Este cantinho parece feito para mim.”
Há cerca de um ano e meio que Natália ocupa os dias no coro da antiga igreja de Santiago, transformada em livraria há precisamente cinco anos. Dali vê turistas e bibliófilos deambularem pelo ondulado das estantes, ainda perplexos com o passe mágico de subir a escadaria íngreme de uma igreja e entrar numa livraria. Ao fundo, os retábulos coloridos do altar-mor parecem abençoar o novo culto. Igreja de uso da família real quando esta ficava em Óbidos, Santiago acolhe agora a “rainha da poesia”. “De muitos países cá passam/ Pessoas que me abraçam/ Neste coro abençoado./ Sou muito admirada/ Quando estou a rendilhar/ Até param para ver/ Ao verem a renda crescer/ Com os bilros a saltitar”, declama Natália do púlpito, entre as muitas quadras acumuladas sobre a mesa e os expositores. “Sempre que compram alguma coisa faço um poema-relâmpago sobre a peça que levam”, revela.
Foi aqui, na igreja-livraria incrustada na muralha, que se escreveu a primeira página de um sonho singular e inesperado: transformar uma vila histórica no coração da literatura em Portugal. “Costumo dizer que Óbidos Vila Literária nasce do impulso de um louco, secundado por outros loucos”, conta Celeste Afonso, na altura vereadora da cultura em Óbidos e hoje directora-executiva do projecto municipal Óbidos Cidade Criativa da Literatura. O louco de quem se fala é José Pinho. O fundador e administrador da Ler Devagar que, ao aceitar o desafio de gerir a nova livraria, alargou-o a uma ambição muito maior: não ter apenas um espaço mas onze, assim como vários festivais e uma agenda literária constante ao longo do ano.
“Ele percebeu que uma livraria não faria ninguém deslocar-se a Óbidos. Tínhamos de construir uma cidade do livro”, resume Celeste. Uma visão que tem tanto de utópico quanto de loucura, se lembrarmos que “Óbidos não tinha qualquer tradição ligada à literatura”. Sobre ela não se escreveram grandes obras nem foi berço de escritores incontornáveis da praça portuguesa, salvo Armando da Silva Carvalho, poeta nascido na freguesia de Olho Marinho, e breves referências pela pena de José Saramago, Camilo Pessanha ou Ruy Belo. Mas Óbidos queria “reinventar-se”. Queria deixar de ser a vila postal do turismo de massas, “que passa mas não fica”. E a literatura é espaço de descoberta demorada, dos livros para a poesia das ruas e das gentes.
Para a concretização do sonho, primeiro converteram-se em livrarias especializadas vários recantos de espaços municipais já abertos ao público, entre antigas lojas de museus, galerias e mercados. Depois, criaram o primeiro grande festival literário em Portugal, o Folio, e agora um segundo evento dedicado à literatura e à viagem (ver caixa). Em 2015, a classificação de Óbidos como Cidade Criativa da UNESCO, na área da literatura, trouxe “legitimação” ao projecto. “De repente, Óbidos é efectivamente uma vila literária, tanto que a UNESCO a reconhece como tal”, admite Celeste Afonso. “Somos a cidade mais pequena da rede, mas a que mais apresenta projectos e efectiva ideias”, diz com orgulho. O projecto prepara-se agora para crescer e fazer do próprio conceito um acervo mais rico e diversificado. Com várias novidades a caminho.
Os livros são bolhas de criatividade
Começamos o passeio literário guiado por Celeste Afonso no Espaço Ó, entre o parque de autocarros e a Porta da Vila. O edifício municipal acolhe iniciativas de “activação e desenvolvimento comunitário”, entre uma sala para eventos, ateliers de artesãos e projectos gastronómicos. Miguel Sousa acaba de entrar para a Casa do Forno com a sua Taberna Pasto da Vila, inspirada numa decoração oitocentista e nas velhas receitas das avós. Ali vende os queijos e os enchidos que produz numa quinta na Usseira, mais o pão e os bolos acabados de sair do forno a lenha e diferentes pratos caseiros servidos em loiça de barro. Durante dois anos, o projecto familiar vai ganhar aqui forma para depois escalar para outro lugar na vila.
Em frente, encontramos a Livraria da Adega encerrada, por isso não conseguimos espreitar o interior. É um dos nove espaços geridos pela Ler Devagar, mas, ao contrário das duas livrarias principais, de momento abre apenas de quinta a domingo. Em breve poderá sofrer remodelações. É que o armazém ao lado deverá receber até ao final do mês uma tipografia tradicional e ter “todo um projecto ligado à impressão”, feita artesanalmente com caracteres móveis, juntamente com uma colecção de livros raros e antigos. “É muito importante para diversificar [o conceito]. A partir daqui, queremos que haja todo um cluster ligado ao livro e à literatura”, afirma Celeste Afonso. O projecto pensado para o espaço já existe em Lisboa e deverá mudar-se integralmente para Óbidos, mas não podemos levantar mais o véu.
Antes de continuarmos o passeio, espreitamos o jardim das traseiras do Espaço Ó — “se há sítio onde gosto de ficar a ler um livro é aqui, debaixo daquela nogueira”, conta Celeste — e seguimos em direcção à via principal da vila muralhada, compacta de turistas, bancas e souvenirs. Mesmo à entrada da Rua Direita, Celeste aponta para uma instalação artística inspirada nas Cidades Invisíveis, de Italo Calvino — a primeira arte urbana autorizada nas paredes da vila. Soldadinhos, apitos e patos de borracha espalham-se por espaços de luz e sombra para formar “cidades impossíveis”.
Mais à frente, entramos na Livraria do Mercado, onde livros usados, publicações de pequenas editoras portuguesas e fundos de colecções arrumam-se em caixas de fruta até ao tecto, juntamente com as hortaliças e os outros produtos agrícolas do mercado biológico, que já se organizava anteriormente neste espaço. “As caixas eram da família do actual presidente da câmara”, revela Celeste Afonso. Depois da Livraria Santiago, que tinha sido feita com o apoio de fundos comunitários, todos os outros espaços foram erguidos com “orçamentos reduzidíssimos”, muita entreajuda e criatividade. O balcão à nossa frente, por exemplo, é “feito com andaimes das obras”, indica Tânia Norte, uma das responsáveis pela Livraria do Mercado.
Aqui o conceito passa pela sustentabilidade e respeito pela natureza, mas também há o objectivo de “desmistificar a ideia do livro usado”, de mostrar que “o interior vale o mesmo”. Há pouco tempo, uma turista francesa encontrou aqui um livro infantil que tinha lido em criança numa biblioteca e que nunca lhe tinha saído da memória. “É muito gratificante, temos obras que já não são fáceis de encontrar”, conta Tânia.
Actualmente, a Livraria do Mercado é provavelmente a mais fotografada e reconhecida pelo grande público. Celeste garante que rivaliza internacionalmente com a imagem da Porta da Vila. “Muitos turistas entravam desprevenidos e depois ficavam deslumbrados. Hoje em dia, alguns já vêm de propósito”, compara Tânia. Para Celeste, aos poucos começa a sentir-se a presença de um outro tipo de turista na vila, que “vem para descobrir, deixar-se estar e se perder”. “Isso é uma coisa nova em Óbidos.”
Uma vila, um Nobel
À data do passeio, a antiga Galeria do Pelourinho ainda se encontrava despida, pronta a acolher mais uma novidade. É aqui que vai instalar-se a nova Casa José Saramago, com inauguração marcada para segunda-feira, data em que se celebra o Dia Mundial do Livro. O espaço está a ser idealizado por Sérgio Letria, curador e membro da direcção da Fundação Saramago. Por isso, Celeste ainda não conhecia todos os pormenores. O objectivo é que as diferentes áreas, que se estendem por dois pisos, sejam “multifuncionais” e que o legado do escritor português esteja presente “sem se impor completamente”, revela.
Com a nova Casa José Saramago, o projecto Óbidos Cidade Criativa da Literatura ganha igualmente uma sede aberta ao público. Um rosto visível e inequívoco. Além dos escritórios, o edifício vai integrar uma galeria com exposições temporárias, um espaço auditório (onde “pode haver conferências, palestras, lançamento de livros ou mesmo pequenos concertos”), um espaço de biblioteca e leitura, com as obras traduzidas em todas as línguas do Prémio Nobel português (atribuído há precisamente 20 anos), uma loja, uma cafetaria com esplanada e um pequeno jardim, e um espaço informativo dedicado às cidades criativas da UNESCO e às casas-museu do país. “O nosso objectivo é que a partir de Óbidos se possa encontrar informação sobre todas as outras casas-museu e fundações — que temos tantas e tão interessantes — e criar novas dinâmicas e projectos comuns”, adianta Celeste.
A ideia de criar uma Casa José Saramago em Óbidos vem germinando desde o início. Quando poucos acreditavam que a loucura teria sucesso, “a Pilar [del Río] e a fundação entenderam, desde o primeiro momento, o que estávamos a dizer”, recorda a responsável. Entraram para o grupo a que Celeste chama “os amigos de Óbidos”, os “cúmplices de um sonho”. Desde o primeiro Folio que Saramago esteve presente na programação. E foi no último festival, no início de Outubro, que a ideia começou a ganhar corpo, membros, cabeça. “Estava a decorrer uma conversa na igreja da Misericórdia e eu e a Pilar saímos, sentámo-nos ali numas escadas e começámos a discutir a Casa José Saramago”, conta. “Um fotógrafo passou e registou o momento. Estamos completamente a construir o futuro ali numa escadinha”, sorri.
Aqui moram escritores, habitam artistas
Celeste chama-lhe a “rua dos artistas”, ainda que as fachadas da Coronel Pacheco não transpareçam a razão da designação ao primeiro encontro. É preciso saber-se ao que se vai, pelo menos por enquanto. Num recanto da rua há uma joalharia a nascer. Daqui a um mês já deverá ter uma vidraça aberta aos turistas, com uma porta de acesso para quem quiser entrar e conhecer as histórias, o trabalho e as técnicas usadas por Rodolfo e Márcia nas pequenas peças de adorno, “algumas ligadas à tradição de Óbidos, outras trabalhos de autor”.
Um pouco mais à frente, é preciso subir uma viela para encontrar a Luthier, atelier de instrumentos musicais de Luís Eusébio, hoje de porta fisicamente encerrada por causa da chuva. Desde que se mudou das Caldas da Rainha para aqui, já construiu 13 instrumentos, de violas a guitarras portuguesas. “O Orlando Trindade [também construtor de instrumentos de cordas] sabia que eu era modelista de cerâmica e músico e em 2009 lançou-me o desafio de construir um instrumento”, recorda Luís Eusébio. “Construi um bandolim e ele ampliou o desafio: ‘Agora faz um violino, que é mais complicado’”, ri-se. Entretanto fez uma guitarra para a filha, outra para o Japão, segue em breve mais uma para Angola. E o ceramista transformou-se em construtor de instrumentos.
É sobre o atelier de Rodolfo e Márcia que fica a Residência Josefa de Óbidos, a primeira residência literária da vila. A escritora Begoña Callejón chegou há uma semana e meia e durante um mês é aqui que vai morar e trabalhar. “Vim com a ideia de escrever um poemário, que está quase terminado, e iniciei uma novela curta”, revela. As ruas empedradas da vila recordam-lhe uma zona de Granada, onde vive. “E gostei muito das casinhas pequenas, brancas. É muito acolhedor.” O dia-a-dia da escritora espanhola ganhou entretanto um novo ritual. “Gosto muito de caminhar porque me ajuda a escrever. Então levanto-me muito cedo de manhã, tomo o pequeno-almoço, vou passear, sempre por uma rua ou sítio diferente, e depois fico o resto do dia a escrever”, enumera.
“Como não temos propriamente uma herança literária em Óbidos, temos de criá-la. E as residências vêm muito nesse sentido”, admite Celeste Afonso. Apesar de os escritores não chegarem com qualquer obrigação de escrever sobre Óbidos, Celeste acredita que se a vila é “o lugar onde estão a criar, ela acaba por estar na obra”. Além da Josefa de Óbidos, destinada à literatura, há duas residências artísticas a serem concluídas na mesma rua. E vão nascer mais duas no início do próximo ano. A única actualmente em funcionamento, diz Celeste, “nunca está vazia”. São cada vez mais os escritores, realizadores, pintores e escultores a pedir para ficar na vila durante algum tempo a trabalhar. “Estava nos planos haver residências literárias, mas Óbidos enquanto laboratório de criação surge com o que foi sendo a demanda do mundo cultural.”
A 11 de Janeiro do próximo ano deverá nascer a Casa Ruy Belo e, a 28 de Março, a Casa Armando da Silva Carvalho abre portas em Olho Marinho. A família do poeta de Rio Maior está a inventariar todo o espólio, que recheará a nova residência literária. “Vai ter a biblioteca e os bens pessoais do dia-a-dia de Ruy Belo”, revela a responsável. No entanto, os dois edifícios não serão casas-museu. “Têm de ser vividas e vivíveis enquanto residências artísticas”. Vão receber novos escritores, que no ambiente do quotidiano dos autores que dão nome às casas, vão criar novas obras. E quando não estiverem ocupadas, vai ser possível visitar cada divisão dos edifícios. Já a biblioteca permanecerá aberta ao público, para consulta dos livros, desde que combinada previamente a visita.
Literatura onde menos se espera
Num edifício colado à Porta da Vila, do lado de fora da muralha, nasceu em 2016 a Silvercoast Volunteers, uma associação de apoio social criada por um grupo de estrangeiros a viver na região. “O objectivo é encorajar a integração na comunidade portuguesa. Como têm sido tão acolhedores, queríamos dar algo em troca”, contam Bernadette e Christopher West, casal britânico a viver na freguesia da Usseira. Além de actividades pontuais em lares ou de apoio na reabilitação dos edifícios históricos — “este Verão vamos andar de pincel na mão a tentar caiar as casas”, riem-se —, o grupo tem dois espaços habitualmente abertos ao público (dependendo da disponibilidade dos associados, todos voluntários).
No rés-do-chão do edifício, esconde-se uma pequena loja de artesanato composta por duas salas, uma com peças produzidas por designers locais, outra com criações feitas nos lares da região. No primeiro andar, fica a biblioteca, com prateleiras feitas em tijolo e traves de madeira. “Temos livros e DVD predominantemente em inglês, mas também em francês, sueco, holandês”, enumeram. “Muitas pessoas mudaram-se para cá e trazem muitos livros que depois acabam por doar-nos.” Em pouco tempo, acumularam várias obras em duplicado e o espaço começa a ser pequeno para tanto livro. Alguns seguem para as escolas do concelho, outros vão entrar num próximo projecto. “Estamos a pensar invadir a vila com livros em várias línguas, não para serem comprados mas para que qualquer pessoa possa levar ou ficar a ler”, desvenda Celeste. Uma espécie de babel literária perdida pelo traçado labiríntico de Óbidos.
Por vezes, a literatura surpreende-nos nos lugares mais inusitados. Numa igreja, na banca de legumes junto à paragem de autocarros ou numa antiga venda centenária ali perto. Na fachada, lê-se “a loja do Américo” rabiscado a negro. Lá dentro, os velhos armários enchem-se de loiças e bibelots de cerâmica em exposição. O balcão cobre-se de revistas e jornais, a maioria da terra. O que à primeira vista pode não passar de uma velha papelaria de bairro revela-se muito mais à medida que Luís Cajão nos mostra os cantos à casa. A surpresa tem efeitomatrioska. Abrimos a primeira porta e descobre-se uma taberna à antiga, preservada como museu. Mais uma porta e surge uma livraria erótica. Outra divisão e chega-se à sala de estar e adega com centenas de garrafas e uma mesa comprida. “Aqui não há patines”, resume o anfitrião. O objectivo é preservar a “identidade inicial” da loja histórica, na família desde meados do século XIX.
Há muito que se tornou um “espaço dos amigos dos amigos”. Das mulheres que vinham comprar de tudo e ficavam de conversa ao balcão, aos homens que se juntavam para um copo na taberna. Os tempos são outros, mas o espírito de tertúlia manteve-se, agora na área mais privada da casa, onde muitas vezes assomam artistas e figuras de proa da região. Durante o Folio, no entanto, todas as divisões estão abertas ao público 24 horas por dia. E tudo começou logo na primeira edição.
Em 2015, estava o festival a arrancar quando Mário Zambujal entrou na loja pela primeira vez. “Fomos até lá abaixo e ele diz: ‘Este é o meu sítio. Posso ficar aqui a dormir? E trazer os meus amigos?’”, recorda Luís Cajão. É desse episódio que nasce O Sítio dos Bons Malandros, inspirado na obra do escritor, com uma livraria erótica que continua a “brincadeira do bom malandro”. “Quisemos fazer uma livraria efectivamente erótica. Não queríamos que fosse vulgar, até porque pela diversidade de livrarias na vila tem lógica cada uma ter a sua especificidade.”
No bar Arco da Cadeia, escondido no centro da vila, não há livrarias nem bibliotecas, mas as tertúlias de poesia decorrem todos os meses para “dar voz às vozes” de Óbidos. Na verdade, Eurico Santos quer homenagear a vila onde nasceu, trazendo para o bar de inspiração medieval tudo aquilo que ajude a contar as histórias e a essência da vida entre as muralhas. “Brincava muitas vezes aqui na rua com amigos e recordo-me das pessoas mais antigas contarem histórias da prisão, umas imaginárias, outras talvez reais, que me ficaram na memória para sempre”, recorda. Dos tempos de miúdo manteve-se também a imagem das velhas tabernas. “Eram espaços escuros de terra batida, com as pipas de vinho e aquele cheiro característico, mas onde muitas vezes via pessoas a cantar, a declamar. Havia a partilha de conhecimento.”
É essa partilha, espontânea e descontraída, que o actor Pedro Giestas tenta trazer para o Cubo dos Poetas Nossos, projecto que começou por correr todo o concelho e agora assume as tertúlias mensais da “Anatomia da Identidade”, no Arco da Cadeia. De entre os participantes, Eurico destaca Abílio Silva, poeta local, hoje com 90 anos. “Além de ter um conhecimento muito vasto e de consumir muitos livros, ele passou algum tempo em Angola, então tem feito uma partilha connosco de autores africanos que não conhecíamos e também dos seus escritos”, descreve o empresário. “Traz sátiras muito engraçadas, algumas escritas há 50 anos mas ainda muito actuais, que acabam por nos deixar a pensar.”
Para Eurico Santos, no entanto, a verdadeira poesia de Óbidos está lá fora, no coração das vielas. “Até tem mais encanto ao pôr do sol e à noite, quando fica desprovida de pessoas e quase se consegue sonhar e entrar na época medieval, só com os barulhos, as luzes, os formatos das casas.” Antes de partimos para descobrir o encanto do entardecer, Eurico deixa-nos uma última dica: o miradouro tem “uma vista lindíssima” sobre Óbidos. Fica a meio da vila, no topo da encosta, junto a uma das saídas da muralha. “Se passar por essa porta tem uma vista soberba sobre a várzea da rainha, que se estende até à lagoa.” Imagine onde escolhemos assistir ao desmaiar do dia entre o canto dos pássaros.
Voltar ao princípio
Se andarmos às arrecuas na linha do tempo, quase podemos dizer que foi aqui que indirectamente tudo começou. Numa antiga escola primária transformada em livraria infantil há uma década, localizada no lugar de Casais Brancos, a uma subida íngreme de distância da vila. É que falta uma personagem essencial a esta história: Mafalda Milhões, a livreira ilustradora d’O Bichinho de Conto. Foi ela que sugeriu a José Pinho visitar a Livraria Santiago, quando ela ainda não era mais do que uma prateleira solitária no interior de uma igreja.
Mafalda vinha de Bolonha, onde tinha estado na Feira Internacional do Livro Ilustrado, José de uma viagem a Zagreb. “Já nos conhecíamos de outras andanças e encontrámo-nos no avião. Viemos o voo todo a falar e eu sempre a insistir para ele ir a Óbidos”, recorda Mafalda. “Tenho a ideia de que não foi fácil convencê-lo, mas também não deve ter sido muito difícil porque passado uma semana ou duas ele estava aqui.” Quando o assunto é livros, quem os ama vai. O desfecho da história já o conhecemos.
A livraria e editora O Bichinho de Conto nasceu na Fábrica da Pólvora, em Barcarena, há 15 anos. “Fomos com uma proposta artística, em que o livreiro era um criador, um sedutor para os outros objectos de criação”, conta Mafalda. Era a primeira livraria especializada em literatura infantil e álbum ilustrado do país. Mas a vontade de dar uma melhor qualidade de vida à família provocou a mudança de localização. Decidiram que a nova casa dos livros tinha de ser “num sítio onde se tivesse brincado muito, tivesse um castelo, de onde se visse o mar e tivesse uma árvore com uma copa do tamanho da livraria”. Depois de visitarem muitas vilas com castelos, Mafalda e a família chegaram a Óbidos, mais tarde à escola primária de Casais Brancos. “Não era o que vínhamos à procura, mas para mim faz todo o sentido, porque fui criada numa escola deste género em Trás-os-Montes. A minha mãe e as minhas tias-avós eram todas professoras.”
O Bichinho de Conto, que se assume como “uma livraria urbana em espaço rural”, faz desde sempre parte da rede de livrarias da Óbidos Vila Literária e Mafalda participa activamente no projecto. É uma das curadoras do Folio. “O que a gente quer é que isto não seja uma coisa que acontece só uma vez, mas que este entusiasmo, este respiro que se vive todos os dias neste território, seja vivido por todas as pessoas que entram na vila ao longo do ano”, comenta Mafalda. Tal como defende Celeste, falta agora envolver mais a comunidade local. E ter uma agenda cultural permanente.
“Se Óbidos se converte num projecto nacional, com um interesse estruturado, em que as pessoas sabem que se quiserem encontrar um livro ele está aqui, então acho que vale a pena continuarmos esta maluqueira.” Para Mafalda, cinco anos são apenas o início para um projecto desta envergadura. E ela está de bem com isso. “Não queremos que a experiência seja rápida, queremos que ela perdure na memória. E isso leva tempo a entranhar na pele.” Segunda-feira inicia-se mais um capítulo. De outros tantos que estão por vir.