Galiza e Norte pedem a Lisboa que valorize caminhos de Santiago
A três anos do próximo Jacobeu, presidente do Eixo Atlântico considera que Portugal está a desperdiçar um tesouro cultural e económico. Ministério da Cultura prepara legislação.
O secretário-geral do Eixo Atlântico, a associação de 38 municípios do Norte de Portugal e Galiza, acusa o Ministério da Cultura português de não dar a importância devida ao Caminho de Santiago e pede ao primeiro-ministro, António Costa, que tome as rédeas deste dossier, sob pena, alerta, de se desperdiçar a oportunidade do próximo Jacobeu, que se assinala em 2021, e para o qual a Galiza vai fazer um esforço de promoção mundial.
Depois de ter lido, na semana passada, declarações da vice-presidente da Comissão de Coordenação da Região Norte (CCDRN) a admitir que em Portugal “há um problema de coordenação, de falta de um interlocutor” para a questão dos caminhos de Santiago”, Xoán Mao explica que o Eixo está há um ano à espera de uma resposta do Ministério da Cultura a um pedido de reunião sobre o tema, e acusa o actual titular da pasta, Luís Filipe Castro Mendes, de não se interessar por este “tesouro”.
Durante uma intervenção num encontro do Agrupamento Europeu de Cooperação Territorial Galicia-Norte de Portugal dedicado ao turismo, realizado em Matosinhos no início da semana passada, a vice-presidente da CCDRN assumiu que Portugal está atrasado. “Esta é uma área a que temos de dar prioridade e na região Norte estamos bastante sensibilizados para isto. Sabemos que há um problema de coordenação, da falta de um interlocutor, até, para chamar a si esta questão. Mas não podemos perder tempo, se queremos aproveitar este aumento de procura de turistas, e ter tudo pronto a tempo do Jacobeu, em 2021”, explicou, na altura Ester Silva.
Questionada pelo PÚBLICO, a vice da CCDRN explicou que, durante esse encontro, “as autoridades galegas informaram aguardar por uma interlocução portuguesa, ou seja, um feedback que indicasse que está a ser agilizada a regulamentação e a certificação dos Caminhos Portugueses de Santiago de Compostela, a exemplo do que aconteceu com o caminho francês. A CCDRN é um organismo desconcentrado da administração com delegação de poderes regionais, nos quais não se incluem as áreas mais relevantes para o efeito, turismo e cultura, que possuem instâncias territoriais próprias. Em todo o caso, a CCDRN não se eximirá de ser parte activa no referido processo, se assim vier a ser entendido útil pelas autoridades nacionais e regionais competentes”, acrescentou.
Já o Ministério da Cultura garante que “tem desenvolvido, em coordenação com o Ministério da Economia, através da Secretaria de Estado do Turismo, um amplo e significativo trabalho com o objectivo de responder à necessidade de uma política integrada e de âmbito nacional para os Caminhos de Santiago, assente numa proposta legislativa sobre a matéria”. Segundo o gabinete de Luís Filipe Castro Mendes, “esta necessidade tornou-se mais premente face à constatação, nomeadamente, da inexistência de instrumentos legais que permitam uma normalização ou harmonização das diversas iniciativas que envolvem os Caminhos de Santiago”.
Certificação a caminho
Numa resposta por email a questões relacionadas com as declarações da vice-presidente da CCDRN e as críticas do Eixo Atlântico, o Ministério da Cultura afirma este “diploma legal inclusivo” deverá responder “aos desideratos colocados pela diversidade de soluções e sobreposição de acções, quer as existentes, quer as que possam vir a ser desenvolvidas. Entre os objectivos principais, está, por exemplo, a certificação dos Caminhos de Santiago”, adianta, acrescentando que “nos últimos meses, o Ministério da Cultura, através da DGPC, e em conjunto com o Turismo de Portugal, tem realizado reuniões com as comissões de coordenação regional, as direcções regionais de cultura e as entidades regionais de turismo, para além da associação nacional de municípios, autarquias e representantes da Igreja Católica, num total de mais de duas dezenas de encontros."
Na resposta enviada também por email ao PÚBLICO, Ester Silva afirma que a CCDRN “congratula-se pelo facto da proposta de legislação que regulamentará e certificará os Caminhos Portugueses de Santiago de Compostela estar em elaboração e reitera a urgência da mesma, tendo presente a preparação do Jacobeu, que se assinala em 2021. Esta urgência advém, ainda, da existência de investimentos candidatos e outros já aprovados a programas financiados pelos fundos da União Europeia que promovem diferentes rotas portuguesas e que poderão ser mais potenciados se beneficiarem de um quadro legal orientador”.
Por outro lado, o secretário-geral do Eixo Atlântico mantém o tom crítico. Nas respostas enviadas ao PÚBLICO o Ministério da Cultura explica que o ministro “recebeu igualmente, em audiência, a associação Eixo Atlântico”, mas Xoán Mao nota que nesse primeiro encontro após a tomada de posse de Luís Filipe Castro Mendes ficou combinado que seria agendada uma reunião alargada sobre o tema, que envolveria inclusivamente a Junta da Galiza e a sociedade Xacobeo, que até agora não aconteceu. E questionado sobre o trabalho de elaboração de quadro legal para os Caminhos em Portugal, Mao pergunta por que razão o Eixo Atlântico não foi envolvido, ainda mais quando esta organização pagou, e ofereceu ao Estado português, estudos sobre a viabilidade da classificação deste bem cultural e turístico.
“O caminho português de Santiago não é o trajecto entre os gabinetes na Ajuda e em São Bento”, atira Mao considerando estranho que se prepare legislação sobre os caminhos sem consultar as câmaras por onde eles passam. E assinalando o contraste entre o actual ministro e o seu antecessor no cargo, João Soares — “que numa semana deu resposta ao nosso pedido de reunião”, frisa —, o secretário-geral do Eixo pede ao primeiro-ministro, António Costa, que assuma a importância deste dossier, e as rédeas do processo de valorização e certificação dos caminhos: investimentos essenciais para o seu reconhecimento pelos peregrinos e para a sua eventual classificação como Património da UNESCO.
O Eixo Atlântico já elaborou estudos sobre os traçados do caminho em Portugal (não se ficando, sequer, pelos territórios dos municípios que representa) e sobre a viabilidade de uma candidatura destes a Património Cultural da Humanidade. Neste último, a conclusão a que chegaram é que o caminho português (nas suas variantes da Costa, Central e do Interior), deveria ser integrado na classificação já atribuída ao Caminho Francês, em Espanha, seguindo aquilo que a UNESCO tem vindo a fazer com patrimónios comuns a espaços geográficos distintos.
Quem gere?
Outra questão fundamental para o sucesso de uma candidatura à UNESCO, e mesmo para a sua credibilização perante as entidades que em Espanha gerem o património ligado aos Caminhos de Santiago, é a existência de uma entidade que chame a si a gestão deste bem. “Nenhum bem pode ser candidatado à Lista do Património Mundial da UNESCO sem a indicação, pelo estado membro de qual é a sua Entidade Gestora. Reproduzindo o texto da Convenção do Património Mundial, podemos, a partir da fonte, compreender a responsabilidade que compete aos estados parte na protecção e valorização dos bens incluídos na Lista”, recordava Rui Ramos Loza no Estudo de Viabilidade da Candidatura à UNESCO do Caminho Português de Santiago, publicado em 2015.
Pelo que o PÚBLICO apurou, a legislação que está a ser preparada deverá dar resposta a estas questões, prevendo a instituição de uma entidade gestora dos caminhos em Portugal, com um conselho executivo e um conselho científico, que apoiará o primeiro. O diploma define também o âmbito de actuação desta nova entidade, cuja tarefa principal passa por ajudar, com a certificação, a separar o trigo do joio.
No estudo produzido para o Eixo Atlântico, Rui Ramos Loza assinalava a existência de atritos entre entidades envolvidas na promoção dos caminhos em Portugal que, dado o incremento de peregrinos dos últimos anos, são vistos, a nível local, como um activo turístico apetecível. A dispersão de esforços entre entidades públicas locais, regionais e nacionais, e entre estas e os agentes privados no terreno, dificultam o reconhecimento deste bem cultural por aqueles que o procuram, o que torna mais urgente, nota o secretário-geral do Eixo Atlântico, a existência de uma espécie de comissão interministerial, envolvendo as áreas da Cultura e do património, do Ordenamento do Território, da Economia (turismo) e das Obras Públicas e Transportes, que articule os esforços nacionais para a valorização do Caminho.
“Em 2016, o Caminho Francês gerou 400 milhões de euros de receitas para Espanha. Num ano, é muito dinheiro”, argumenta Xoán Mao, insistindo na ideia de que os países atravessados pelos Caminhos de Santiago consideram-no um “tesouro” cultural, mas também económico. “É preciso não esquecer que ele está muito ligado à formação de uma identidade europeia, foi o primeiro itinerário europeu”, insiste. E, em contraponto, nota que ele tem sido procurado por muitos peregrinos não católicos, ou cristãos sequer, oriundos de países como os Estados Unidos, a Rússia, a China ou o Japão, mercados emissores de turistas que Espanha, como Portugal, tem interesse em explorar, facto que o deixa mais perplexo com a demora na definição de uma estratégia nacional.