Como tornar os festivais de música menos masculinos com o Keychange
O festival Westway Lab, que desde quarta-feira decorre em Guimarães, já funcionou este ano de acordo com as metas 50-50 na igualdade de género.
Estarão os alinhamentos dos festivais de música equilibrados quanto ao género dos músicos que compõem os cartazes? No seguimento do desequilíbrio transversal que existe em vários sectores da sociedade, talvez a resposta seja previsível. De acordo com um levantamento de dados levado a cabo pela plataforma de apoio musical britânica PRS Foundation, no ano passado apenas 26% dos artistas dos cartazes dos eventos musicais do Reino Unido foram mulheres. Se a atenção incidir sobre os cabeças de cartaz, então o número desce para 10%.
É com estes dados que a CEO desta fundação, Vanessa Reed, lança o mote para apresentar o programa Keychange, que até 2022 pretende atingir a meta de um equilíbrio 50-50 no maior número de festivais possível. O projecto foi dado a conhecer numa das mais de uma dezena de conferências que decorreram nos dois primeiros dias da quinta edição do Westway Lab, marcados também pelas apresentações ao vivo do resultado das criações das bandas que na semana anterior estiveram em residência artística no Centro de Criação de Candoso e por conversas sobre esse mesmo processo em lugares inusitados de Guimarães.
Tudo o que se passa no Westway Lab está debaixo do olhar atento de vários agentes directamente ligados à indústria musical. Há uma forte presença internacional, entre managers, publishers, promotores, produtores ou músicos. Estarão cerca de uma centena de participantes, segundo a organização do festival. Será para estes profissionais que a agenda, sobretudo da parte da manhã, é pensada.
Em três salas do Palácio Vila Flor decorrem em simultâneo conferências que interessam sobretudo a quem está no negócio. Será por defeito ou feitio que não são as mais procuradas pelos músicos. Se a estes fica entregue a parte criativa, há quem tenha de fazer chegar o resultado desse processo ao público.
Debate-se o futuro do mercado do sync, que trabalha o licenciamento da música para fins comerciais. Cogita-se ao estilo brainstorming, orientado por Markus Linde, supervisor musical na Thag’s Agent, qual a melhor forma de simplificar o processo deste negócio que na Europa ainda está a anos-luz do que acontece nos Estados Unidos, ficando algumas bandas de países mais periféricos mais distantes das grandes marcas.
E também é de marcas que se fala num painel liderado por Jake Beamount-Nesbit, da IMMF – International Music Managers Forum. Nesta discussão a questão do branding surge em dois níveis: na perspectiva da aproximação das marcas às bandas e na marca em que os próprios músicos se transformam. Há depois o cruzamento destes dois níveis. De que forma a associação de uma marca a outra poderá prejudicar uma delas? Dá-se o exemplo de uma banda vegana que vendeu a alma ao diabo ao não ter resistido ceder uma das músicas para uma publicidade a uma grande cadeia de restaurantes de hambúrgueres. Conta o manager dessa mesma banda que a quantia era uma soma apetecível. A banda já não existe.
Servem estes painéis também para serem apresentados novos programas, como é exemplo o Keychange. Vanessa Reed conta que este projecto nasce após ter sido detectada uma diferença “abissal” entre as candidaturas a financiamentos feitas por homens e mulheres que chegavam à fundação da qual faz parte. Na sequência desse desequilíbrio foi lançado um programa específico para a criação para o género feminino. Estão nesse programa cerca de 60 artistas. Foi só em 2017 que arrancou o Keychange, mas já são mais de 60 os festivais que aderiram. Pioneiro em Portugal foi o Westway Lab, que já este ano funcionou de acordo com as metas 50-50. Diz o director do festival, Rui Torrinha, que o esforço não foi muito maior do que noutros anos por, apesar de não haver essa contabilidade, já trabalharem desde o início com um grupo de convidados “o mais diversificado possível”, seja a nível de género ou geográfico. Sublinha ainda que o critério da programação terá de obedecer sempre e apenas a uma directriz, “a qualidade”. Algo que não considera um problema por não existir uma relação entre género e criatividade.
Entende Vanessa Reed ser mais difícil estabelecer as metas a curto prazo nos festivais de grandes dimensões. Ainda assim afirma existirem muitos que já estão a trabalhar nos bastidores para que chegar a esse rácio óptimo. Dá o exemplo do Roskilde Festival, na Dinamarca, como um dos que diz não poderem integrar o programa numa fase imediata, mas que, apesar de não o fazer, apoia o projecto a nível financeiro.
Conversas e processos
Também é fora de portas, longe da base do festival, no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, que as conversas acontecem, em dois espaços inusitados. Na quarta-feira, no restaurante Cor de Tangerina, próximo do Paços dos Duques de Bragança, e, no dia seguinte, junto ao Toural, na Tasca do Tio Júlio. Estão lá os músicos que participaram nas residências artísticas que antecederam o Westway para uma conversa informal com o público. Fala-se sobre o processo de criação e sobre a experiência em palco desta parceria entre músicos nacionais e internacionais que para o trabalho de composição tiveram pouco mais de uma semana; na maior parte dos casos, por uma questão de agenda dos próprios músicos, foram ainda menos os dias úteis para a criação.
Foi o caso das duplas O Gajo com os austríacos Cari Cari e de Ana com as francesas Perkins Sisters, que tocaram na quarta-feira. Em função dessas condicionantes, a primeira dupla escolheu jogar pelo seguro e optou por pegar em temas originais dos dois projectos e dar-lhes uma nova roupagem. Foi uma solução inteligente que deu origem a um casamento de sucesso entre o rock de atmosfera mais desértica e sensual e a viola campaniça d'O Gajo.
O one-man band Ana arriscou mais e pela primeira vez compôs a pensar num duo de vocalistas, recorrendo, além da habitual guitarra "loopada", aos teclados. Apesar de alguns contratempos técnicos, assim que estes ficaram resolvidos conseguiram apanhar o comboio no mesmo sítio onde tinham ficado e continuaram sem que a execução dos temas saísse prejudicada, embora para um público que, entretanto, acabou por se deixar levar por outras distracções. Dizia Ana no dia seguinte no Tasco do Tio Júlio que de toda a experiência o mais importante foi o processo. A noite terminou com o punk rock a piscar o olho aos Turbonegro dos húngaros Dope Calypso.
Na quinta-feira, a dupla Vita (EUA) e :papercutz pôs a parelha Laure Briard (França) com o vimaranense Mister Roland, que lhe sucedeu em palco, numa situação nada fácil. Tanto a norte-americana como Bruno Miguel, mentor da outra banda, não negaram que o processo de composição nasceu de uma relação tensa entre os dois músicos. Do resultado dessa tensão nasce o momento mais entusiasmante dos showcases apresentados pelas quatro parelhas. Com uma base pop electrónica, as composições não fogem muito ao que cada um faz sozinho. A união das duas partes deu origem a material coeso que muito beneficiou com a criatividade das linhas de voz de Vita, que claramente funcionam como elemento unificador durante todo o alinhamento.
As expectativas estavam no topo quando entrou a segunda dupla, que deu a volta à pressão imposta pelo conjunto anterior com uma série de canções que ora oscilam entre momentos mais próximos de um yé-yé bem-disposto e momentos mais negros típicos de um songwriter mais depressivo. Em termos de performance, o que poderia ter atrapalhado acabou por funcionar como elemento dinâmico. Falamos da constante troca de posições e instrumentos entre os músicos. No seu todo funcionaram bem enquanto grupo, ficando no ar a ideia de que o que ali foi feito, com mais tempo de trabalho, poderia ter seguido outro rumo mais próximo da maturação. A fechar a noite esteve o esloveno Bowrain, que há dois anos também fez parte de uma das residências artísticas.