Quando Susa Monteiro sonha a cores é assim que ela voa
Ilustradora e autora de BD, Susa Monteiro acaba de lançar na Pato Lógico um livro que é um convite à viagem, estejamos acordados ou a dormir. Em Sonho não há palavras, mas há animais pré-históricos e uma melancolia que vem de longe.
Este homem que Susa Monteiro criou voa de costas e por entre as árvores; mergulha vestido; passeia por florestas que moram numa casa; escala vulcões em erupção para descobrir uma mulher de cabelos de fogo (como convém) que descansa no colo de uma cratera; ou corre sob uma chuva de animais que parecem saídos de uma cena de caça da pré-história. E isto sempre na companhia de um tigre, que tanto pode ser a sua sombra, como o seu duplo ou os seus pensamentos transformados em algo tangível. Este é um livro sem palavras e onde, por isso, a(s) história(s) pode(m) ser o que quisermos.
“Ele voa como eu voo nos meus sonhos. Também ele tenta fugir e não consegue. Isso também me acontece quando sonho – e acontece a muita gente. É uma fantasia que não sei de onde vem, um medo não sei de quê”, diz a artista Susa Monteiro, 38 anos, a propósito de uma das personagens de Sonho, livro que publicou recentemente na colecção Imagens que Contam, que a editora Pato Lógico lançou em 2013 para acolher “ilustradores contadores de histórias”, assim os define, e que inclui já títulos de João Fazenda (Dança), Jaime Ferraz (Máquina), Afonso Cruz (Capital), Marta Monteiro (Sombras), Catarina Sobral (Vazio) ou André da Loba (Bestial).
Nesta colecção, explica a ilustradora e autora de BD que tanto edita livros e fanzines, como trabalha para a imprensa e para o circuito das galerias, há que obedecer a um formato predefinido – 32 páginas (mais guardas), título de uma só palavra – para contar uma “história”, ou várias, sem recorrer a um texto. Na resposta ao desafio da editora, que aceitou de imediato, Susa Monteiro quis sobretudo trabalhar a cor forte, deixando ao leitor a tarefa de decidir se aquilo que lhe dá a ver é o sonho que vem do título ou uma “viagem que realmente aconteceu” e que juntou um homem e um tigre.
Será que o livro conta a história do homem, do tigre ou dos dois? “Queria que a relação entre eles não fosse óbvia e é por isso que não se tocam”, diz, “mas da maneira como eu a vejo, e que pode não ser a certa para as outras pessoas, o protagonista é o homem. É como se o tigre só existisse para servir de testemunha a esta aventura”. Uma aventura marcada pela exuberância da cor, algo que a autora, uma alentejana nascida em Beja, cidade onde há 14 anos participa na organização do Festival Internacional de BD (este ano de 25 de Maio a 10 de Junho), só começou a usar há dois ou três anos.
“Antes disso fazia tudo a preto e branco porque tinha vergonha, tinha medo de ser julgada por estar a trabalhar uma coisa para a qual não tinha formação”, argumenta a ilustradora que começou por estudar Realização Plástica do Espectáculo e que trabalhou na criação de figurinos, cenários e adereços para teatro até 2005, ano em que foi inaugurada a Bedeteca de Beja e em que se fez a primeira edição do festival. “Comecei a experimentar isto em 2000 e pouco a pouco fui percebendo que era mesmo para mim. Agora, quanto mais velha estou, menos vergonha tenho. Não devo nada a ninguém. Se quero usar cor em determinado projecto, uso. Se quero fazer a preto e branco, faço.”
Da cor, diz, tira sobretudo a luz, e do preto e branco uma intensidade dramática de que precisa quando está dedicada às histórias curtas para BD que costuma publicar em fanzines. Escrever uma longa em banda desenhada, um projecto que ainda não abandonou e para o qual tem já um parceiro, o escritor (que é também ilustrador) Afonso Cruz, exige muito tempo e dinheiro – “um álbum leva ano e meio a fazer, quer muita disciplina e outra profissão que sustente essa espera [pelo produto final]” -, ao passo que a ilustração, no caso da autora de Sonho, é algo rápido, quase torrencial.
“É fácil criar um ambiente em preto e branco, mas é difícil dar-lhe temperatura. Sem cores, é muito complicado mostrar ao leitor um fim de tarde de Verão.” Com as que usa em Sonho – as ilustrações são feitas a pastel de óleo, um material difícil de controlar, assegura – a “temperatura” não é um problema.
“O que o livro mostra - e que pode ser 'lido' como uma história só ou como uma história por página - começaram por ser paisagens que eu tinha na cabeça e que queria usar.” Uma apetência para a “cenografia” que ficou dos tempos do teatro? “Não, o teatro está arrumado. Eram simplesmente imagens, lugares que eu queria mostrar.”
Sonho, cujos originais estão expostos na Casa da Cultura de Beja até 12 de Maio, começou por se chamar Ilhas e acabou por se transformar numa viagem nostálgica e sem fio condutor. “É verdade que há uma certa melancolia nos meus desenhos, mas não é nada intencional. Eles são melancólicos porque eu também sou. Vem de longe.” E isso é verdade para os livros, para o trabalho que chega às galerias e para o que todas as semanas ilustra a crónica de António Lobo Antunes na Visão (já trabalhou para outras publicações, incluindo o PÚBLICO e o Diário do Alentejo).
Susa Monteiro, que impõe a si mesma um “horário de funcionário” e que todos os dias desenha, tem neste momento três livros em curso, uns mais adiantados que outros: um de fábulas para a Verbo, Coisas que Acontecem (título provisório) para a Bruaá e outro para a Pato Lógico, sobre a águia imperial.
Em casa, admite, estão quatro telas em branco e uma caixa de óleos à espera que ela ganhe coragem já que pintar foi coisa que quis a vida inteira. “Não sei porquê, mas não consegui ainda. Dá-me medo ou outra coisa qualquer”, diz esta mulher filha de uma alemã e de um português que se conheceram no Algarve e casaram na Bélgica, para que ele pudesse escapar à guerra colonial, fazendo uso da sua pronúncia alentejana, suave e deliciosa. “Pintar é uma grande responsabilidade.”
Para já, o que está mesmo quase a sair é um fanzine da Ó! Galeria – um dos espaços que expõem as suas ilustrações em Lisboa e no Porto – que trará vários trabalhos seus inspirados na América. É precisamente para lá que vai viajar este Verão, naquelas que serão as suas primeiras férias em oito anos. Vai fazer a 66, a mítica estrada que liga Chicago a Los Angeles. Quem a acompanha quer escrever poesia ou trabalhar num documentário, mas ela leva um livro de BD na cabeça. Apetece dizer “boa viagem” e “por favor, não se esqueça dos cadernos”.