Esta galeria brasileira vale ouro para alguns artistas portugueses
Uma parceria entre uma galeria de São Paulo e outra do Porto quer criar um diálogo transatlântico nas artes plásticas. A veterana Luisa Strina associou-se à Kubik para a primeira de várias exposições que são uma promessa de internacionalização.
Passadas dez horas, ao fim de um dia inteiro, o artista Pedro Vaz e os seus dois guias tinham percorrido apenas dez quilómetros da Trilha do Facão, um caminho histórico que une Paraty a Ouro Preto. Avançavam à vagarosa média de um quilómetro por hora porque era preciso pegar num facão – leia-se: uma catana – para voltar a abrir partes deste antigo caminho que já foi muita coisa na história do Brasil e que quando entra na Serra do Mar, perto de Paraty, desaparece engolido pela Mata Atlântica. Começou por ser um trilho indígena guaianá para se transformar, durante a ocupação colonial e a corrida ao ouro, na primeira estrada militar construída pelos portugueses no Brasil.
Se isto parece uma “expedição” numa natureza semi-selvagem é porque foi isso mesmo que o artista Pedro Vaz quis fazer neste projecto que começou como uma residência artística no Pivô, o conhecido espaço de arte contemporânea situado no icónico edifício Copan desenhado por Oscar Niemeyer. O resultado desta viagem de 15 dias realizada no final de 2016, uma série de pinturas de paisagens intituladas Caminho do Ouro (2016-17), é agora apresentado na Galeria Luisa Strina, numa iniciativa conjunta com a Kubikgallery, do Porto, que representa Pedro Vaz em Portugal. A exposição foi planeada de modo a coincidir com a SP-Arte, a feira de arte contemporânea de São Paulo onde a Kubik se faz representar, juntamente com outras três galerias portuguesas; como habitualmente, o aquecimento para a feira, que abriu as portas na quarta-feira para profissionais e decorre até domingo, fez-se na maratona de inaugurações e visitas às galerias em que estava incluída a Luisa Strina.
A exposição Depois do Choque, os Trópicos, inaugurada no último sábado no espaço mais pequeno da Luisa Strina, aquele que foi remodelado pelo arquitecto Isay Weinfeld, “é uma parceria transatlântica para fomentar o diálogo entre artistas brasileiros e portugueses”, diz o comunicado conjunto das duas galerias. O galerista João Azinheiro, da Kubik, fala de “um trânsito atlântico” para explicar a ambição de uma ideia que começou a germinar há um ano, e que vem da necessidade de criar vínculos entre os artistas portugueses e o Brasil. Ele, que já viveu aqui e trabalhou numa galeria paulista, continua a manter um pequeno escritório em São Paulo.
Na Luisa Strina, Pedro Vaz, que vive e trabalha em Lisboa, estabelece um diálogo com o artista Beto Shwafaty, que apresenta uma série de desenhos, intitulada Açúcar nas Veias (2017), produzidos com açúcar, chá e café, também eles produtos coloniais, como o ouro. O trabalho do artista brasileiro é resultado de uma investigação sobre processos coloniais desenvolvida durante uma estadia em Londres. Um deles, vê-se na parede da galeria, inscreve a palavra “Lisboa” sobre papel manteiga e teve de passar por um forno para ganhar este aspecto “tostado” ou “queimado”.
“A ligação ao Brasil dos artistas portugueses devia ser mais intensa. Devíamos ter uma ligação cultural que não fosse só as telenovelas. É ridículo que ela não exista numa área como as artes plásticas, em que o Brasil tem uma cultura muito grande”, afirma João Azinheiro. “Acredito que o Brasil deve ser um canal de internacionalização para os artistas portugueses.”
A parceria estabelecida com a Luisa Strina, de que esta é a primeira consequência, deixa-o muito orgulhoso: “Esta proximidade entre a Kubik, que tem oito anos, e a Luisa Strina é um marco na minha carreira galerística. Desde que comecei que é uma referência. É uma das galerias mais importantes do Brasil e também no mundo.” Fundada em 1974, foi a primeira galeria brasileira a ir à Art Basel, a feira suíça que é considerada a mais relevante no calendário das artes, e está ligada à chamada “Geração 70” dos artistas brasileiros, de que fazem parte nomes como Cildo Meireles, Tunga ou Antonio Dias. De Portugal, representa actualmente a artista Leonor Antunes, depois de ter trabalhado com Julião Sarmento.
“Estou muito entusiasmada e espero fazê-lo mais vezes”, diz Luisa Strina numa conversa com o PÚBLICO. A próxima vez poderá ser já em Setembro, durante a Bienal de São Paulo. O número exacto de exposições, entre cá e lá, ainda não está definido, mas andará entre duas e quatro por ano. “Trazer os portugueses para cá e levar os brasileiros para lá é muito saudável. O Brasil é muito isolado em termos de artes plásticas”, afirma a galerista, aludindo às barreiras alfandegárias e à elevada tributação das transacções de obras de arte. Apesar de descerem excepcionalmente durante a semana da feira, argumenta, isso não é suficiente.
A experiência do lugar
Pedro Vaz era o artista natural a levar ao Brasil porque é aquele com quem a Kubik trabalha há mais tempo. Além disso, antes deste projecto com o Pivô, Pedro Vaz, cuja pesquisa artística se centra na paisagem, numa herança da Land Art, já tinha realizado em 2015 e 2016 exposições individuais na Galeria Baró, também em São Paulo, com a série de pinturas Atlântica. Depois, houve ainda outra exposição no Consulado Geral de Portugal em São Paulo, em que mostrou o seu trabalho em conjunto com a artista paulista Manuela Costa Lima.
Enquanto paisagista (é assim que se classifica), Pedro Vaz procura um conhecimento directo do lugar. De certa maneira, este projecto é uma interrogação sobre as primeiras imagens deste território sul-americano que foram difundidas na Europa, e portanto sobre uma iconografia que conta os primeiros passos da globalização. Feitas por pintores naturalistas do século XIX, como Jean-Julien Deltil (1791-1863), essas pinturas de carácter ilustrativo assumem também um lado muito político, sublinha o artista. Tinham como função mostrar “um novo mundo exótico, uma realidade que era falsa, mas trabalhada para passar essa imagem.”
O regresso ao Caminho do Ouro é uma tentativa de substituir uma representação pictórica por uma paisagem vivida. “A experiência do lugar em vez da imagem do lugar", aponta Pedro Vaz num texto sobre o projecto. E acrescenta, em conversa com o PÚBLICO: “Preocupa-me a forma como o homem se relaciona com a paisagem como espaço natural, de que forma elege a paisagem sobre a qual num certo momento decide trabalhar.”
Ao longo de uma caminhada aberta à faca seguindo um trilho abandonado há 14 anos, Pedro Vaz conseguiu aproximar-se dessas imagens de há 200 anos, das sensações cândidas recolhidas numa paisagem virgem aos olhos europeus. Árvores e folhas de palmeira que têm uma escala quatro vezes maior, outro céu: “Nas pinturas do século XIX vemos um céu muito amarelo ou com um azul muito queimado. Na Europa o céu é mais frio.” É uma paisagem que resulta em pinturas mais quentes e espontâneas.
A exposição na Luisa Strina “é uma oportunidade única e fantástica” para um artista português no Brasil, reconhece Pedro Vaz. “Lisboa foi Capital Ibero-Americana de Cultura no ano passado, e houve muitas exposições de artistas desses países. Tem havido bastante divulgação do Brasil para Portugal, mas no sentido oposto nem tanto. O João e a Kubik abrem uma porta e a possibilidade de apresentar este projecto com uma das melhores galerias do Brasil. Não podia ser melhor.”
O PÚBLICO viajou a convite da SP-Arte