“Toda a gente diz que o presidente do Sporting está muito doente”

Ex-vice de Bruno de Carvalho diz que é a direcção do clube que tem de decidir sobre a continuidade do presidente. Rápida, mas discretamente. “[Não pode haver uma assembleia geral] para nos matarmos todos uns aos outros”, diz Torres Pereira.

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Torres Pereira esteve com Bruno de Carvalho de 2011 a 2017 Nuno Ferreira Santos

Esteve com Bruno de Carvalho de 2011 a 2017, mas saiu em ruptura. Só agora fala, porque o presidente “passou a linha vermelha”. E a situação apenas se resolve com a saída, por única responsabilidade dele, diz em entrevista ao PÚBLICO e Renascença (onde a pode ouvir às 12h).

Foi vice-presidente de Bruno de Carvalho no primeiro mandato. Saiu por vontade própria ou foi dispensado pelo presidente do Sporting?
Eu não sou um “notável” do Sporting, não pertenço a nenhum grupo, facção ou tendência. Sou livre e foi nessa condição que decidi intervir no meu clube em 2011 para trazer Bruno de Carvalho para a presidência e é nessa condição que estou aqui, para dizer que não me revejo no actual presidente do Sporting e que considero que ele já não tem condições para continuar como presidente. A razão pela qual me afastei do actual presidente do Sporting tem que ver com a discussão de uma alteração aos estatutos que foi por ele apresentada em 2015 e na qual não me consegui rever. Era uma proposta que ia mais longe do que aquela que foi aprovada há pouco tempo na assembleia geral (AG), incompatível com o princípio da separação de poderes; concentrava no presidente todo o poder disciplinar, retirado ao conselho fiscal e disciplinar, e o poder de instaurar inquéritos e promover sanções.

Queria fazê-lo sozinho?
O conselho directivo, mas era meramente simbólico, porque todo o poder estava concentrado no presidente. Ele que tinha ainda o poder de demitir qualquer dos membros da direcção, eleitos em AG. São dois exemplos...

Essa proposta caiu?
Foi aprovada pela direcção, na minha ausência – o que me levou na reunião seguinte a fazer uma declaração de voto e a dizer que teria votado contra, para que não fosse aprovada por unanimidade. Isso fez-me na altura compreender... a democracia pressupõe a separação dos poderes...

Alguma fiscalização...
Impõe a fiscalização por órgãos próprios e não a concentração num conselho directivo, muito menos num presidente da direcção, deste tipo de situações.

Foi aí que percebeu que Bruno de Carvalho tinha deixado de servir ao Sporting?
Sim, os fins não justificam os meios. A paixão por um clube desportivo não pode justificar que se passe esta “linha vermelha” que separa os princípios das conveniências ou as convicções dos interesses. Isso não. Aquela proposta claramente passava. E o correr dos tempos veio demonstrando, desde então, num avolumar de factos e comportamentos, de intolerância e linguagem, que ultimamente tem envergonhado os sportinguistas e tido o efeito que tem na equipa de futebol. Muita gente atribui a um post no Facebook o problema que se põe hoje. Não tem que ver com um post, mas com a sequência de acontecimentos que mostram uma visão do Sporting incompatível com os seus interesses. Se hoje temos uma equipa de futebol animicamente destroçada, um treinador sobre brasas, os adeptos angustiados, muitos envergonhados e divididos, uma emissão obrigacionista posta em causa, cotação das acções congelada, etc., etc., isso deve-se inequivocamente e exclusivamente às atitudes e comportamentos do presidente do Sporting. O meu colega e amigo Eduardo Barroso diz que tudo não passa de uma tempestade num copo de água, mas não tem razão.

Ele disse numa entrevista que os críticos de Bruno de Carvalho estão a querer aproveitar um erro dele para fazer um “linchamento”.
Já lá vou. Isto é uma crise muito séria, muito profunda, da responsabilidade do presidente do Sporting. Ele diz que há um linchamento, mas também não tem razão. Ninguém quer linchar Bruno de Carvalho – o que houve foi um sobressalto cívico dos adeptos e associados, indignados com a falta de respeito do presidente para com os jogadores e treinador, preocupados com as consequências das atitudes e comportamentos menos próprios do presidente e com o impacto dessas atitudes na vida económica, social, desportiva e financeira do clube. Mas também, deixe-me dizê-lo, ficaram perplexos com a falta de noção da responsabilidade que decorre do exercício das suas funções. Nós votamos num presidente de um clube por duas razões: queremos que alguém com garra defenda os interesses do clube e que leve aos títulos desportivos; e também para que ele nos represente. E essa função é muito importante, porque há milhões que têm os olhos nessa pessoa. A linguagem, o trato, a civilidade, a forma de lidar com os outros, o respeito são absolutamente essenciais. E estamos a falar de muita gente nova, que vê o exemplo que vem dos presidentes dos clubes. E se o que dali vem é o apelo a uma linguagem desbragada, atitudes de intolerância, conflitualidade, vamos estar a multiplicar exemplos negativos...

Ele não era assim em 2011?
Não, Bruno de Carvalho não era assim em 2011. O comportamento de Bruno de Carvalho mudou muito em 2014. Aquela crise com Marco Silva teve um efeito muito grande na sua forma de agir e intervir. Crise que durou até Julho de 2015, com a rescisão de contrato com o treinador. Esta discussão dos estatutos foi em Março de 2015. Quinze dias depois o Sporting ganhava a Taça de Portugal e depois Marco Silva foi despedido.

O resultado desportivo ajudou a maquilhar a situação?
Houve outras coisas, mas a única que me preocupou foi ser conivente ou não com uma violação dos princípios básicos. Tive de votar contra. E depois ou a proposta de estatutos ia a AG – e aí eu teria que tomar uma atitude –, ou não ia e eu...

E não foi?
Não foi, não sei porquê, ainda bem. E fui até ao fim do mandato, para defender os interesses do Sporting. Mas agora considero que os interesses do Sporting no futuro podem estar mais comprometidos pela continuidade do actual presidente do que o contrário. E, por isso, tal como em 2011 o apoiei, hoje digo que temos de encontrar uma solução que o faça sair com dignidade – porque ele tem muito mérito no seu primeiro mandato, ninguém lho tira. Mas as suas atitudes e comportamento estão a delapidar o crédito que esse mérito lhe trouxe. E o crédito que obteve no passado não pode servir para branquear os erros que comete no presente – e muito menos para lhe passar um cheque em branco para o futuro.

Tendo em conta a última AG, há dois meses, não é possível que Bruno de Carvalho consiga novo voto de confiança dos sócios?
Se me perguntar o que se vai passar a seguir, diria que há um facto muito importante para isso: toda a gente diz que o presidente do Sporting está muito doente. E, a ser verdade, esse facto não pode pôr em causa a continuidade da gestão do Sporting, porque estamos a falar da SAD, que é cotada em bolsa, estamos a falar de uma situação financeira com empréstimos obrigacionistas que se vencem, com accionistas, etc, etc. Se isso é verdade, eu acho que... Tenho lido nos jornais que vai haver uma AG em breve, que vai haver destituição, mas eu não sei se vai haver uma AG. Mas acho que o problema não se resolve numa AG, não é a AG que tem uma varinha mágica...

Então como é que se resolve?
Esta situação tem de ser resolvida pelo próprio conselho directivo. Se é verdade que o presidente está doente e que dessa doença decorre uma diminuição das suas faculdades para a gestão do Sporting, então quem tem de ter isto em conta, avaliar a situação e tomar as decisões decorrentes desta situação é o conselho directivo.

Mas são pessoas escolhidas pelo próprio Bruno de Carvalho.
É o conselho directivo do Sporting. E é ele que tem de fazer, em nome dos interesses do clube, uma análise da situação e tomar a melhor decisão – se é verdade que o presidente está doente. Eu não sei, mas dizem que sim. E, se for necessário, que os sócios se pronunciem na altura própria; os sócios do Sporting terão a ocasião para se pronunciar. Agora, do que o Sporting precisa é de paz, que haja uma continuidade da vida associativa do Sporting, para que resolva o problema dos empréstimos, para que a equipa de futebol volte a ter tranquilidade. Se eu já tinha admiração por Jorge Jesus, ela aumentou enormemente. Ele foi fantástico e o team manager, André Geraldes, foi admirável na forma discreta como tentaram resolver uma situação muito, muito complicada. É disso que o Sporting precisa: que a equipa volte a respirar, que o treinador volte a ficar tranquilo, que os sócios deixem de estar divididos, angustiados.

Se com Bruno de Carvalho isso já não vai acontecer, o conselho directivo deve decidir rapidamente ou deixar para o final da época?
Se é verdade que o presidente está muito doente, foi até o dr. Eduardo Barroso que o disse, que estava em burnout, isto obriga a uma decisão. Numa empresa, um presidente do conselho de administração que esteja em burnout, há decisões que decorrem deste diagnóstico. E se é o insuspeito dr. Eduardo Barroso que faz o diagnóstico, então a terapêutica tem de ser apropriada. Mas é o conselho directivo que tem de tomar as decisões. Isto agora, nos próximos tempos, porque, repito, o Sporting precisa de paz, a equipa de tranquilidade, os sócios têm de se acalmar. Não vamos, depois de tudo o que se passou, única e exclusivamente responsabilidade do presidente, acrescentar mais lenha à fogueira e agora andarmos a tratar de uma AG para nos matarmos todos uns aos outros. Isso seria catastrófico. E quem para isso contribuir está a dar um exemplo degradante para os interesses do Sporting.

Mas havendo essa acalmia, se o clube tiver um bom resultado com o Atlético de Madrid ou uma vitória na Taça, não pode acabar tudo por se resolver?
Não creio, porque esta crise foi funda de mais. Não é próprio um presidente de um clube expor os jogadores da equipa principal. Se eu gostei dos erros [dos jogadores], não. Odiei aquilo. Mas ele não pode tratar os jogadores desta maneira – e no passado também já o fez. Há um destempero na intervenção do presidente do Sporting que não é normal. Não pode ser assim. E agora foi longe de mais, porque o Sporting não perdeu tudo. E porque tudo isto se passou numa altura em que o foco das atenções estava no Benfica, confrontado com acusações tremendas. Os benfiquistas agradecem. Por isso não creio que, mesmo que o Sporting eliminasse o Atlético de Madrid, mesmo que ganhe a Taça de Portugal ou que ganhasse o campeonato, tudo isto foi tão fundo na relação entre um presidente, os associados, os jogadores e o seu treinador, que tenho dúvidas que esta ferida pudesse cicatrizar.

Os sócios ou o conselho directivo arriscam afastar Bruno de Carvalho sem que exista um nome forte para o substituir?
Neste momento, o Sporting tem um conselho directivo a quem compete tomar as decisões. Seria conveniente que os sócios, quando este vendaval passar, se pronunciassem sobre esta matéria. Achando que o actual presidente chegou a um ponto de não retorno, por mais que a sua situação familiar inspire simpatias, que as suas lombalgias inspirem simpatias, acho que a situação não tem retorno. Agora, acho que isto é uma coisa que tem de ser amadurecida. Isto não pode ser feito com o coração, com ligeireza...

Isto não é só a reacção de um certo Sporting “sulista e elitista”, de descendentes de fundadores incomodados com Bruno de Carvalho?
(Risos) Não, eu sou um sportinguista livre e independente. O José Maria Ricciardi diz que esta instabilidade não foi causada pelo presidente e que tem que ver com essa luta de facções que existe há muitos anos no Sporting, ainda antes deste presidente. Mas ele também não tem razão – porque esta instabilidade foi criada pelo actual presidente e por mais ninguém.

E isto não dá tudo muito poder aos jogadores?
Se me perguntar se é normal os jogadores fazerem comunicados, acho que não. Mas eu tenho memória e recordo-me que uma certa forma de lidar com os jogadores, esta, começou em 2014. Eu admito que, num multiplicar de situações, as coisas se precipitem. Penso que foi o que se passou. Se calhar eles têm algumas atenuantes. Seguramente o que não é normal é haver ameaças de suspensões e processos disciplinares na praça pública.

O que está a sugerir é que o conselho directivo faça exactamente o quê?
Os estatutos são resposta a isso: tem de ser assegurada a continuidade da situação em curso e, na altura oportuna, terá de se encontrar uma alternativa ao presidente Bruno de Carvalho.

O conselho directivo deve fazer o quê? Suspender o presidente?
Não sei, o que sei é que toda a gente diz – incluindo o dr. Eduardo Barroso, que é médico – que o presidente está em burnout. E isto obriga à tomada de decisões rápidas. E não há mais ninguém para resolver esta situação, é o conselho directivo que em nome do interesse do Sporting deve assegurar... Falou agora das emissões obrigacionistas, desde logo... Repito: a responsabilidade de resolver esta situação no curto prazo é do conselho directivo.

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