Como fazer Soldado Milhões com menos de um milhão
Soldado Milhões, de Jorge Paixão da Costa e Gonçalo Galvão Teles, sobre um herói da Batalha de La Lys, quer ser um filme de guerra "para a família". Mas há risco no entertainment, diz a produtora Pandora da Cunha Telles: não pode acontecer um espectador olhar para as cenas e dizer que se nota que foi feito com pouco dinheiro.
Em 2010, Jorge Paixão da Costa tinha acabado de fazer República, minissérie da RTP sobre o nascimento da Primeira República. Não sabia o que se seguia. Um dia, o amigo e escritor José Jorge Letria falou-lhe da história do Soldado Milhões. Ainda para mais, vinha aí o centenário da Primeira Guerra Mundial. “Não sei se conhece o José Jorge, mas quando ele começou a contar, meia hora depois o filme já estava feito, com os pormenores todos. Nem precisava de escrever o guião”, conta o realizador ao Ípsilon.
O processo de investigação começou aí, mas o filme só chega agora às salas para coincidir com o centenário da batalha de La Lys, na Flandres. A participação portuguesa na Primeira Grande Guerra durante a Primeira República, época que Paixão da Costa tinha filmado, resultou em milhares de mortos, com centenas de baixas do Corpo Expedicionário Português a terem acontecido nessa batalha. Teve um herói: Aníbal Augusto Milhais, conhecido como Soldado Milhões. Foi condecorado, ainda no campo de batalha, com a Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito por ter defendido sozinho a retirada do seu pelotão contra os alemães. É sobre essa personagem real que versa Soldado Milhões, filme a quatro mãos, realizado por Paixão da Costa e Gonçalo Galvão Teles.
O processo envolveu bastante preparação, pesquisa feita em Valongo de Milhais, a aldeia de Murça onde o soldado nasceu e que ganhou o seu nome nos anos 1940.
“Li o livro do Francisco Galope [O Herói Português da I Guerra Mundial] e falei com historiadores”, explica Galvão Teles. O escritor António Torrado falou-lhe da bisneta do soldado, Mafalda Milhões — a família adoptou a alcunha do soldado como apelido —, que tem uma editora e uma livraria em Óbidos. Foi conhecê-la e ela apresentou-lhe a sua mãe, que disse que ainda tinha dois tios vivos. Um deles era a sua tia Adelaide, filha do soldado e antiga professora primária que guardava em casa documentos do pai — escritos, cartas dos soldados e memórias de quem esteve na frente foram instrumentais para o filme. “Ela falou de muitas das características dele, o que me levou a perceber que ele era alguém que não queria nada ser herói. O Estado Novo aproveitou-se dele, exibiu-o, algo que o revoltou muito”, partilha.
Guerra para a família
Em conversa com os filhos de Milhais, ocorreu-lhe um dispositivo narrativo para contar a história: duas linhas temporais, uma em 1943, o ano em que a sua terra ganhou o seu nome, com um Milhais adulto a descrever relutantemente à filha Adelaide, durante uma caçada, como era a guerra, e outra 25 anos antes, no campo de batalha. Miguel Borges faz de Milhais nos anos 40, José Arrais em 1918 — são parecidos, apesar de, ressalva o realizador, terem lóbulos da orelha diferentes.
“O intuito era fazer um filme de guerra para toda a família”, esclarece Pandora da Cunha Telles, produtora da Ukbar Filmes envolvida no processo desde o início. Algo mais duro, alega, “não permitira reunir a família toda à volta de um filme português sobre um momento histórico marcante.” Mesmo assim, não se coíbe de mostrar violência. A ideia era também manter tudo no campo do entretenimento, mas não trair a parte histórica e suscitar a curiosidade em relação a estes eventos.
Foi tudo feito com alguma liberdade poética. Há quatro membros principais do pelotão português, incluindo Milhais — todos os actores que fazem a recruta, incluindo os figurantes, que são alunos do Conservatório, tiveram uma semana de recruta em Alcochete e Mafra. Um deles, Malha-Vacas, teve na vida real um destino diferente daquele que tem no filme, isto para “adicionar mais complexidade à volta do soldado”, fundamenta a produtora. Também foi ficcionado um encontro entre Milhais e o médico Jaime Cortesão — que esteve na guerra mas não há registo de se ter cruzado com o soldado. E foi decidido não incluir o episódio em que o soldado se aqueceu dentro de uma carcaça de cavalo durante a noite. Mesmo a batalha de La Lys é mostrada rapidamente. Algumas destas decisões foram tomadas porque, justifica a produtora, não queria que um espectador olhasse para uma cena e dissesse que se notava que tinha sido feita com pouco dinheiro. Pandora não menciona números concretos, só adianta que o orçamento foi menor do que um milhão de euros. “É extremamente arriscado” fazer um filme destes dessa maneira, sublinha.
Mesmo assim, sente que o risco vale a pena. “Não podemos fazer todos os mesmos filmes, há uma necessidade de variedade. É preciso haver filmes que toquem as pessoas, é preciso ter-se noção de que se podem fazer filmes de guerra, de ficção científica, comédias, além de dramas e filmes de arte-ensaio. Podíamos ter pedido financiamento estrangeiro, mas ninguém está interessado em narrar esta história da perspectiva dos portugueses”, admite.
Paixão da Costa co-escreveu o filme com Mário Botequilha — colaborador do Inimigo Público. “Isto é uma obra de ficção, feita com duas condicionantes: tínhamos de respeitar a biografia de uma pessoa que existiu e teve impacto na mitologia da participação portuguesa na Primeira Guerra e sabe-se pouco sobre a história pessoal dele. Está mais ou menos estabelecido o episódio na batalha de La Lys em que ele fica sozinho a defender a posição e permite o recuo dos companheiros, mas não se sabe o que veio depois. O nosso trabalho foi preencher o resto”, resume o argumentista.
O filme tem dois realizadores porque, depois deste processo todo, Paixão da Costa tinha compromissos inadiáveis. Para colmatar ausências, Gonçalo Galvão Teles foi contratado. Só que o projecto afinal não avançou quando era suposto, por causa de burocracias, e quando chegou o momento da rodagem, no Verão passado, o realizador original já estava disponível outra vez. Foi Gonçalo Galvão Teles quem insistiu em incluí-lo. Ambos concordam que o filme resultou melhor assim. “Foi uma preparação muito cuidada, minuciosa, discutida”, afirma Jorge.
Como referências os dois mencionam as cenas de trincheiras de Horizontes de Glória, de Stanley Kubrick, enquanto Gonçalo sublinha que não quis influenciar-se demasiado. “Quando vou fazer um filme imagino como vai ser, aqui não sabia como ia resultar, queria descobri-lo ao mesmo tempo que o estava a fazer.” Ainda assim, admite que reviu O Caçador, de Michael Cimino, e Um Longo Domingo de Noivado, de Jean-Pierre Jeunet.
Recriar a guerra
A rodagem durou 22 dias, mas a pós-produção fez-se ao longo oito meses, com tudo a ser afinado até ao último momento. O filme tem, asseguram os produtores, 570 planos com efeitos digitais. Foram coordenados pela Hummlum de Jorge Carvalho, produtora associada do filme, com acabamentos na Rússia, Estados Unidos e Bulgária. Estes efeitos “não são só explosões”, explica Pandora. Também há tiros, multiplicação de figuração, fumo, ambiente, partículas que ficam no ar depois das explosões, aviões, reconstrução da Lisboa da época e armas. Além dos céus, “que em 90% das partes nas trincheiras são negros, foram filmados quando o céu estava azul”.
Mas a Primeira Grande Guerra não foi só recriada digitalmente. “Recriámos as trincheiras de raiz, a partir dos manuais do CEP, no Campo de Tiro de Alcochete”, desvenda a produtora. Quanto às fardas, investigaram se existiam restos da altura. “Toda a gente dizia que havia, mas só existiam fardas da Primeira Guerra em África, que eram diferentes das da Flandres. Tivemos de fazer de raiz”, continua. “Era uma lã esquisita, um tecido terrível, eles queixavam-se quando chovia, secava e parecia papelão”, esclarece o realizador. As armas, essas, de plástico, tiveram a muito custo de ser mandadas vir de fora, porque, conta a produtora, “Portugal tem uma legislação muito agressiva no que toca à importação de armas, mesmo que seja temporária e sejam réplicas”.
Não foi fácil, resume a produtora. “Recebemos exactamente o mesmo valor que recebe alguém que faz um filme em Lisboa, contemporâneo, sem efeitos digitais. Andámos a mexer as peças do puzzle para permitir que tudo fosse feito dentro do orçamento. Acabou por receber toda a gente menos dinheiro, incluindo os realizadores, porque estamos sempre a tentar empurrar as fronteiras do que se consegue fazer em Portugal."