Cancros do sangue e inovação
É nas doenças do sangue que houve maiores progressos em termos de sobrevivência e qualidade de vida.
Há 30 anos, um amigo que agora é um brilhante oncologista disse-me que tinha feito bem em escolher a especialidade de hematologia, a “parte” da medicina que se dedica às doenças do sangue. “A especialidade está bonita.” Nunca me esqueci. Tinha razão este meu colega. A hematologia estava “bonita” e hoje ainda é mais gratificante. Por força das circunstâncias e do programa de treino e desenvolvimento da hematologia clínica em Lisboa acabei por me tornar um hematologista de cancros do sangue e gânglios linfáticos, um oncologista hematológico. Não me arrependo. As neoplasias malignas dos órgãos relacionados com o sangue e a imunidade são aquelas em que se registaram mais avanços em termos de diagnóstico e tratamento. É neste tipo de patologias que se encontra o maior número de doentes com cancros curados. É aqui que a pediatria oncológica tem mais sucessos. É nas doenças do sangue e dos gânglios que houve maiores progressos em termos de sobrevivência e de qualidade de vida. Isto, claro, sem minorar tudo o que de fantástico tem acontecido na oncologia e em toda a Medicina de base científica, a única que pode ostentar esse nome.
Fruto de muita ciência e investigação, há doenças que já são curáveis para a maioria dos doentes que delas padecem, como sejam as leucemias linfoblásticas das crianças e os linfomas de Hodgkin. Os linfomas não-Hodgkin de grande agressividade também podem ser alvo de cura. Há doentes adultos em que as leucemias, seja de que tipo for, são eliminadas. Há doenças em que a probabilidade de viver mais, inclusivamente sem doença, aumentou quase dez anos, como é o caso do mieloma.
Hoje, já não temos só a quimioterapia, cujos efeitos secundários diminuíram na razão direta do aumento da sua eficácia. Há melhores formas de submeter os doentes a radioterapia, com delimitação muito precisa das zonas a irradiar. Depois de termos aprendido a usar a medula óssea, e as células do sangue, para fazer transplantações que permitiram aumentar as doses administradas, podemos já usar, sem receios, dadores não familiares e até mesmo pais, filhos e irmãos que só sejam, em termos genéticos, “meio” iguais ao doente recetor, os haploidênticos. Hoje, quase todos poderemos ter um dador de “medula óssea”. Há medicamentos que são moléculas dirigidas à maquinaria específica da célula cancerosa e que interferem no seu defeito genético primordial. Existem remédios que “convencem” o cancro a “suicidar-se”. Fabricam-se anticorpos que só atacam as células doentes ou que ativam a imunidade do doente para que esta elimine o cancro. E já há processos de “domesticação” e ensino das células imunológicas que, depois de manipuladas em laboratório, podem ser re-injetadas nos doentes, as chamadas CAR-T. Um mundo real de possibilidades.
Mas, para que tudo isto possa a chegar a quem necessite, em tempo útil, precisamos de ainda mais investigação, de doentes que estejam dispostos a colaborar em ensaios clínicos, de estruturas facilitadoras de pesquisas que os governos tardam em implementar e financiar, de mais medicamentos inovadores aprovados e financeiramente comportáveis, de burocracia célere, de mais especialistas, de enfermeiros e de tantos outros técnicos. Invista-se na hematologia. Vale a pena.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico