Jardim Botânico de Lisboa, uma “caixinha de biodiversidade” que vai finalmente reabrir
Depois de um ano e meio fechado, o jardim volta a abrir este sábado. Pelo menos durante a próxima semana será gratuito e haverá visitas guiadas, onde se ouvirão algumas histórias das cerca de 1500 espécies desse espaço.
Entrar no Jardim Botânico de Lisboa é viajar numa floresta com plantas dos quatro cantos do mundo. Situado no coração de Lisboa, na Rua da Escola Politécnica, é um pequeno pulmão de quatro hectares nessa parte da cidade. A partir deste sábado, podemos voltar a aproveitar esse espaço: após um ano e meio em obras, o jardim reabre ao público às 11h. Há duas visitas guiadas durante o dia e, pelo menos na próxima semana, a entrada será gratuita.
Assim que passamos o portão da entrada, João Pedro Sousa Dias, director do Museu Nacional de História Natural e da Ciência (Muhnac), ao qual pertence o jardim botânico, indica que o gradeamento que dá para o jardim das monocotiledóneas teve de ser todo recuperado. Esse gradeamento estava coberto por uma planta trepadeira que, quando foi tirada, mostrou o verdadeiro estado de degradação das grades. Agora essa é uma das alterações no jardim e um (pequeno) exemplo do motivo pelo qual as obras demoraram 18 meses, em vez dos seis previstos.
“Quando se meteu mãos à obra, houve coisas que se mostraram mais complicadas do que se pensava”, realça João Pedro Sousa Dias.
Em 2013, este jardim científico venceu o Orçamento Participativo de Lisboa no valor de 500 mil euros. “A proposta era no sentido não só de o requalificar, como de melhorar infra-estruturas”, lembra o director.
“A principal mudança é algo que não se vê”, diz João Pedro Sousa Dias a apontar para o solo. Os caminhos foram renovados, mas a mudança a que se refere está debaixo deles. “Há uma nova estrutura a nível da electricidade, da rega e da recolha das águas fluviais”, indica, frisando que uma das mudanças foi a separação entre o sistema de rega e o sistema de águas domésticas. Isso permitirá ao Muhnac poupar no custo da água.
Ao caminharmos pelo jardim, deparamo-nos com uma nova estrutura: um pequeno anfiteatro. “É a única peça inteiramente nova no jardim. Vai ser possível fazer lá todo o tipo de espectáculos”, diz João Pedro Sousa Dias, apesar de referir que não há eventos agendados. Outro aspecto importante (mas não acabado) é a recuperação do lago principal. “O jardim segue a traça original. Não foi nada alterado, foi tudo recuperado”, resume, mostrando novos bebedouros e avisando que haverá Internet gratuita.
Qual a relevância do jardim? “É importante a dois níveis: educativo e da fruição e a nível da própria importância que tem no ambiente da cidade”, responde o director. Ao lado, também a percorrer os trilhos do jardim, Raquel Barata, botânica e responsável pelo serviço educativo do Muhnac, acrescenta: “Um jardim botânico acaba por ser uma caixinha de biodiversidade porque mantém vivos exemplares de espécies que possam já estar ameaçadas na natureza. Tem um papel de preservação da biodiversidade.”
No tempo dos dinossauros
Raquel Barata trabalha desde 2004 no jardim botânico e diz que hoje consegue contar histórias de quase todas as plantas. É ao percorrer o arboreto, a parte de baixo do jardim, que nos mostra a árvore-do-imperador (Chrysophyllum Imperiale), que está ameaçada na natureza. “O Jardim Botânico de Lisboa faz parte do grupo de jardins botânicos que têm esta árvore.” Além disso, realça que o botânico Jules Daveau, que idealizou o arboreto, foi um visionário.
Projectado no século XIX, o jardim servia para o ensino e investigação em botânica da Escola Politécnica (que funcionou até ao início do século XX). Antes, já havia nesse espaço uma tradição no estudo da botânica, iniciado com o colégio jesuíta da Cotovia, sediado ali entre 1609 e 1759. Em 1873, inaugurou-se a parte superior do jardim chamada “classe” (hoje ainda encerrada), usada para fins educativos e projectada pelo primeiro jardineiro-chefe, o alemão Edmund Goeze. A outra parte do jardim é o tal arboreto, inaugurado cinco anos depois. Em 2010 foi classificado como monumento nacional e este ano comemora 140 anos a 11 de Novembro.
“Jules Daveau foi um visionário porque, estando o jardim numa encosta tão inclinada, imaginou como poderia manter as plantas de quatro cantos do mundo: pôs em cima cactos e plantas carnudas – que aguentam bem a exposição ao sol – e, cá em baixo, as plantas que precisam de mais humidade”, explica Raquel Barata. “A verdade é que funcionou porque as plantas cresceram e criou-se um microclima em que chega a haver uma diferença de dois graus entre a parte de cima e a de baixo no Verão. Isso faz com que tenhamos uma colecção de palmeiras ao ar livre das mais diversas da Europa. O jardim acaba por ter um cunho subtropical e ao mesmo tempo é romântico.”
Até podemos viajar ao tempo dos dinossauros. Em frente à árvore-do-imperador há plantas do grupo das cicadófitas, “autênticos fósseis vivos”. Representam o grupo mais primitivo de gimnospérmicas, conhecem-se vestígios fósseis seus desde há 290 milhões de anos e tiveram o seu apogeu no período Jurássico (entre há 200 e 145 milhões de anos). “Há ali uma pinha no meio [da planta], está a ver?”, aponta a botânica para esta planta sem flor. “No tempo dos dinossauros, as plantas não se reproduziam com flor, isso foi uma co-evolução com os insectos.”
Além de uma boa colecção de cicadófitas e palmeiras, o jardim tem colecções importantes de figueiras, xerófitas e araucárias. A “perigosa” búnia-búnia pertence à última colecção. Está no arboreto e também é do tempo dos dinossauros. “É da Austrália e é muito engraçada porque as pinhas podem chegar a atingir dez quilos. Quando está com essas pinhas temos de fechar essa área do jardim”, conta a sorrir Raquel Barata. E tem de se pôr um aviso a dizer: “A búnia-búnia está com pinha.”
O jardim não tem só plantas de países remotos. Há plantas de Portugal, como o carvalho-português ou o teixo. Nativo de quase toda a Europa, América do Norte e do Sul, do Norte de África, Ásia e da Austrália, o teixo está em vias de extinção em Portugal. “É de onde é extraído um princípio activo para alguns fármacos [o taxol] na luta contra o cancro”, destaca Raquel Barata, dizendo que agora é sintetizado quimicamente.
Uma lenda de Hércules
Há vários recantos no jardim e um dos mais refrescantes é o túnel dos bambus, como lhe chamam. É neste ambiente que a botânica nos indica que este espaço é um “tampão de ruído” com a Avenida da Liberdade tão perto. Numa visita ao jardim, ouvimos aves e observamos borboletas. “Olhe ali uma borboleta almirante-vermelho”, alerta Raquel Barata. “É também um purificador do ar da Avenida da Liberdade, que é a mais poluída de Lisboa.” Acaba por ser um “pequenino pulmão” naquela parte da cidade.
E também se “respira” divulgação científica. Neste sábado, para celebrar a reabertura, há uma visita sobre as colecções do jardim (às 14h30) e outra sobre os seus 140 anos de história (às 16h). Também na segunda-feira às 15h e na terça-feira às 11h haverá visitas guiadas. São todas gratuitas mediante inscrição. As actividades que se faziam antes do encerramento continuam: aos fins-de-semana, nos dias comemorativos e para as escolas.
No fim da visita, Raquel Barata faz questão de contar uma lenda que partilha nas visitas que orienta. É a lenda do dragoeiro (Dracaena draco), uma planta endémica da Macaronésia (Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde). Em forma de guarda-chuva, está no início do arboreto. “Reza a lenda que Hércules, no seu 11.º trabalho, teve de ir ao Jardim das Hespérides [da mitologia grega] roubar três maçãs e lutou contra um dragão de cem cabeças”, narra. “Por cada gota de sangue do dragão que caia no chão nascia um dragoeiro. Por isso é que se diz que esta planta tem o sangue de dragão a correr dentro dela.”
A botânica apanha uma folha do chão e mostra a cor avermelhada numa das extremidades. “É a seiva da planta que quando está ao ar, oxida e fica desta cor. O pigmento é conhecido como ‘sangue-de-dragão’ e os artistas recorriam a ele para tingir tecidos ou madeira.” Esta espécie está classificada como “vulnerável” pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN).
Agora, Raquel Barata só quer que as pessoas usufruam deste renovado “museu das plantas”, das histórias que há para contar e percebam por que é que é tão importante para todos nós.