Trapero, o polícia mais respeitado vai ser julgado por sedição
Juíza pronuncia ex-chefe dos Mossos por organização criminosa e sedição. Em poucos meses, o major passou de ícone que via frases suas inscritas em T-shirts a agente relegado para trabalho administrativo.
A polícia catalã comportou-se de forma “a obstruir qualquer actuação que bloqueasse o plano estratégico até à independência”, plano que culminou no referendo da autodeterminação, a 1 de Outubro, e na declaração de secessão feita por Carles Puigdemont, no dia 27 desse mês.
É com base nessas conclusões que a magistrada da Audiência Nacional espanhola, Carme Lamela, aceitou pronunciar por organização criminal e dois delitos de sedição o então chefe dos Mossos d’Esquadra catalães, major Josep Lluís Trapero; acusando de organização criminosa e de um delito de sedição o ex-director-geral do corpo, Pere Soler; e o antigo secretário-geral do Departamento do Interior [equivalente a Ministério] da Generalitat, César Puig.
Estes delitos dizem respeito a todo o processo, mas especialmente aos acontecimentos dos dias 20 e 21 de Setembro e, claro, do dia da própria consulta sobre a independência, que o Tribunal Superior de Justiça da Catalunha dera ordens para impedir.
Por causa da manifestação de 20 de Setembro, que se prolongou pela madrugada de dia 21, será acusada de um crime de sedição uma quarta pessoa – trata-se da intendente dos Mossos no bairro do Eixample, onde fica o Departamento de Economia, cenário do protesto marcado pelas associações soberanistas no dia em que polícia nacional e a guarda civil entraram numa série de instalações da Generalitat para deter pessoas e recolher provas, uma operação que visava tornar impossível a votação de 1 de Outubro.
"Fiel cumpridor"
Segundo se lê no auto de pronunciamento, todos os arguidos “desempenharam as suas actividades enquanto membros de uma complexa e heterogénea organização unida pelo propósito de alcançar a secessão da Catalunha e a sua proclamação como república independente, à margem das vias legais”. No quadro de uma “estratégia premeditada e perfeitamente coordenada”, estabelecida há dois anos, Lamela entende que houve uma divisão de tarefas entre autoridades governamentais, parlamentares, policiais e civis para chegar à independência. O líder era Puigdemont – Trapero surge como fiel e eficiente cumpridor do papel que lhe estaria reservado.
Assim, no caso dos dias 20 e 21 de Setembro, quando uma multidão cercou o Departamento de Economia deixando encurralados no seu interior oficiais da Justiça que levavam o mandado do tribunal e dezenas de agentes da Guarda Civil, a juíza entende que os Mossos permitiram que essas pessoas, “com a força coerciva e intimidatória que uma multidão hostil proporciona”, ali se mantivessem “com o objectivo de impedir ou dificultar gravemente o cumprimento da ordem judicial de registo” de provas.
Em tribunal, Trapero assegurou que os Mossos ofereceram em diferentes alturas aos membros da Guarda Civil a formação de um corredor de segurança que lhes permitisse abandonar o edifício. Pelo contrário, escreve Lamela, “em vez de actuar, [os Mossos] limitaram-se a aparentar a impossibilidade de tal cumprimento perante o tumulto das pessoas ali concentradas, quando, na verdade, se tratava de uma recusa clara às reiteradas petições que receberam da Guarda Civil”.
Antes do referendo, Madrid enviou para as principais cidades catalãs milhares de reforços da Polícia Nacional e da Guarda Civil, pretendendo formar um comando único em que os Mossos obedeceriam à Polícia Nacional. Trapero aceitou coordenar acções, mas não submeter o seu corpo policial, com 39 anos de independência, a ordens de outros.
O resultado é que cada corpo agiu de forma diferente, com as outras polícias a acusarem os Mossos de nada fazer para encerrar as escolas onde se votava, enquanto a Polícia Nacional e a Guarda Civil abriam caminho a golpes de cassetete, retirando urnas e boletins de 400 escolas. Pelo caminho, segundo as autoridades de Saúde da Catalunha, deixaram 893 feridos, incluindo um homem atingido por uma bala de borracha que perdeu a visão de um olho.
“Esta é a nossa polícia”
Antes, mas sobretudo depois da consulta, houve protestos de catalães contra a Polícia Nacional e a Guarda Civil, enquanto o seu comportamento era elogiado por todos em Madrid, do primeiro-ministro, Mariano Rajoy, ao rei Felipe VI. A actuação dos Mossos, por seu turno, era posta em causa, enquanto nas ruas os agentes da polícia autonómica recebiam abraços espontâneos e ouviam gritos de “esta é a nossa polícia”.
Trapero era o chefe e o rosto dos Mossos e, independentemente do destino que lhe dite a Justiça, ficará para sempre como uma das figuras deste período, considerado como a pior crise política em Espanha desde o fim da transição. Para os independentistas é um herói, para os pró-Espanha, um traidor.
Nomeado chefe da polícia catalã em 2013, passou à frente de muitos comissários com mais antiguidade. Entre os homens que comandou, ganhou fama de ser directo e teimoso, mas capaz de aceitar críticas, de trato um pouco duro, sem filtros, mas sempre educado, distante mas com a porta aberta. Muito discreto, sabe-se que tem um grupo de amigos de longa data com quem passa férias, em Cadaqués, na companhia de Sonia, a sua namorada de sempre.
Nascido num bairro de Badalona, periferia de Barcelona, em 1965, sonhou ser biólogo e passar os dias na montanha. Esse caminho começou a ficar para trás quando o secretário da junta de freguesia se lembrou de juntar os miúdos do quarteirão, pedindo-lhes que vigiassem as paredes do edifício recém-pintado – gostaram tanto que criaram uma junta infantil em que Trapero tinha a tarefa de anotar tudo o que acontecia.
Escuteiro e são
“Comenta sempre que ser escuteiro o ajudou a crescer com sanidade”, disseram ao jornal catalão Ara o médico Bonaventura Clotet e o jornalista Joan Vehils, ambos parte do tal núcleo duro que come as paellas que Trapero cozinha em Cadaqués e se senta a ouvi-lo tocar guitarra e cantar pela noite fora.
Formado em Direito, fez uma pós-graduação em Segurança Pública e tirou um curso na academia do FBI. Entrou nos Mossos aos 25 anos, como agente raso, mas já apaixonado pela investigação.
Habituado a usar uniforme, nunca deixou de o fazer quando chegou a chefe da polícia, o que fazia com que muitas vezes fosse parado na rua por gente que lhe pedia indicações – se sabia, respondia, se não, pedia ajuda a algum dos seus guarda-costas. Em Agosto do ano passado, depois das inúmeras conferências de imprensa que dirigiu na sequência dos atentados nas Ramblas de Barcelona, continuou a ser parado, mas agora por pessoas que lhe pediam para tirar fotografias com ele ou que apenas lhe queriam agradecer. Um aplauso espontâneo na rua deixou-o de lágrimas nos olhos.
Foi o atentado – a forma como dirigiu as investigações e modo rigoroso como geriu a informação – que o catapultou para o estatuto de ícone. “Já não há nomes americanos. Quando se pergunta – pelo menos na Catalunha – por um polícia, o primeiro que venha à cabeça, ninguém responde mais com a última personagem de ficção americana. Há algumas semanas que um impulso automático empurra a responder Josep Lluis Trapero”, escreveu o jornal El Diario num perfil dedicado ao major.
Com um conselheiro do Interior (Joaquín Forn) que acabava de chegar ao cargo, e um director-geral (Soler) em parte incerta, Trapero assumiu a gestão pública do atentado. Ao seu estilo, directo, sem erros, sem divulgar nada antes de estar absolutamente confirmado.
“Bueno, pues molt bé”
Numa das muitas conferências de imprensa que deu, com media de todo o mundo, um jornalista belga criticou-o por estar a responder em catalão. Trapero explicou que respondia na língua da pergunta, ora em castelhano, ora em catalão. O jornalista decidiu abandonar a sala. “Bueno, pues molt bé, pues adiós”, comentou Trapero, alternando entre o castelhano e o catalão. A frase tornou-se viral e apareceu em T-shirts e gorros com o seu rosto. Entretanto, até chocolates lhes foram dedicados e a palavra “herói” passou a ser usada para o descrever.
Estávamos em Agosto. A 28 de Outubro, já investigado por “sedição”, foi afastado do cargo e mandado para trás de uma secretária, no primeiro dia em que Madrid mandou na Catalunha. Os seus próximos garantem que nunca escolheria a alternativa pensada pelo Governo de Rajoy: a dissolução do corpo policial que integra há 27 anos.