“É dar e receber”. É assim há 70 anos numa república que está à beira de ficar sem casa
Alberga 15 estudantes que vivem numa das três repúblicas que existem em Lisboa. O senhorio não lhes vai renovar o contrato e com isso a história de uma casa com 70 anos pode estar em risco de se perder.
Francisco Faria, de 21 anos, saiu de Vila Nova de Famalicão, em Setembro, para estudar Comunicação Social e Cultural em Lisboa. Quando chegou teve uma "pequena aventura" no que toca a alojamento. Viveu numa casa onde não tinha direito “a quase a nada”. "Para ter acesso à casa de banho e à cozinha foi uma sorte. Para ter acesso à sala tinha de pagar mais”. Havia uma máquina de lavar que não se podia usar porque podia avariar, disse-lhe um dia o senhorio. Do bolso, saíam-lhe 280 euros para a renda. “Em Lisboa, está-se a viver um período em que não há respeito absolutamente nenhum por quem anda à procura de casa”, admite.
Ao fim de um mês cansou-se. Foi ao gabinete de apoio ao aluno da universidade pedir ajuda, onde lhe entregaram uma lista com opções de alojamento. Entre elas, estava a República do Santo Condestável. Ligou, havia uma vaga e aproveitou.
Francisco é um dos mais novos residentes do quarto andar do número 48 da Avenida Elias Garcia. No final do ano passado, o senhorio enviou-lhes uma carta registada a dizer que não pretendia renovar o contrato e que, por isso, teriam de entregar as chaves até ao dia 30 de Abril. O que durante quase 70 anos foi uma certeza - a de que aquele espaço é um "lar" para estudantes universitários de fora de Lisboa - só deu lugar a dúvidas: O que vai ser feito da República do Santo Condestável?
É um T8 improvisado, com uma varanda a todo o comprimento, um "spot", como quem ali mora lhe chama, onde se juntam a conversar e a beber um copo. Tem uma sala grande com o símbolo da república logo à entrada. O mocho há-de estar igualmente noutras divisões da casa, simbolizando a sabedoria e acompanhando um dos lemas da república: o de que um ano ali passado equivale a 100 anos de vida. É daí que vem a festa "Centenário" que todos os anos enche a casa, em Novembro, onde os repúblicos mais antigos e os mais novos se juntam para celebrar, como comprovam as fotografias que preenchem o longo corredor da casa e vão contando a história daquela instituição.
A república havia de nascer em 1948 como o Lar de Santo Condestável, no quinto andar no número 50, da Avenida Miguel Bombarda, para acolher estudantes universitários provenientes de outras zonas do país, das ilhas e das ex-colónias.
O estatuto de república só foi lhes foi reconhecido em 1990, quando a lei permitiu que fossem fundadas outras fora da “cidade dos estudantes”, Coimbra. “O nosso objectivo é acolher estudantes universitários de fora de Lisboa. É um dos requisitos para pertencer à República. Sempre o foi, desde a fundação”, diz Rafael Gil, 22 anos, que é de Leiria e estudante de Engenharia Electrotécnica, no Instituto Superior Técnico, e para ali entrou em 2013.
Mas a história desta instituição, que é também uma associação desde 1987, tem sido atribulada. Em 1995, uma derrocada nas traseiras do prédio obrigou-os a mudar-se temporariamente para uma outra casa, em Sete Rios. O objectivo era regressar à da Miguel Bombarda, mas uma acção de despejo travou-lhes essa intenção. Acabaram por se instalar na Avenida Elias Garcia em 2000.
Paulo Almeida, hoje com 38 anos, ainda se lembra dos quatro dias que levaram a mudar-se para a casa nova, em 2000, a carregar o camião das mudanças. “Era de manhã a noite”, recorda o engenheiro informático que, na altura, era o tesoureiro da república.
Tinha ali entrado dois anos antes, quando já estudava no Técnico. A mesa que hoje está na sala da casa ainda é um dos móveis que estava na casa da Miguel Bombarda. Quando se mudaram foram para ali pagar 1500 euros (feitas já as conversões para euros). No total, passou ali mais de seis anos. Antes disso, ainda pensou em mudar-se para a Universidade do Porto. Mas quando entrou na república mudou de ideias. “Foi das melhores coisas que me aconteceram”, diz, sobretudo estando longe de casa, em Vizela.
"Para onde é que nós vamos?"
Logo no início deste ano lectivo, em Outubro, o senhorio marcou uma reunião, onde lhes propôs o aumento da renda dos 2034 que actualmente pagam para os 5000 euros. Recebeu um não como reposta.
Os estudantes admitem que as rendas têm sido actualizadas anualmente. "Não é uma questão de estarmos a pagar 200 ou 300 euros, ou um valor que não faz sentido. As rendas têm sido aumentadas sempre", aponta Alexandre Martins, 27 anos, estudante de Gestão no ISCTE.
“Não vamos conseguir encontrar casa, em lado nenhum, em Lisboa. Imaginemos que chega a carta e que vamos ser postos na rua. Para onde é que nós vamos?”, questiona Taras Lykhenko, o ucraniano de 22 anos que é estudante de engenharia informática e é hoje o presidente da república.
Pelas rendas médias em Lisboa, um casa daquela tipologia, um T5 que está adaptado a T8, pode rondar os cinco, seis mil euros. E, assim, “é impossível”, dizem.
“Se quisermos ter um espaço onde possa abrigar toda a gente, o valor é completamente ridículo. Há gente da casa que se tiver que sair daqui, provavelmente vai ter de sair de Lisboa”, constata Alexandre. E "as condições [para obter] bolsas são restritas", completa Francisco Mira, de 21 anos, que saiu de Évora há quatro anos para estudar engenharia informática no Técnico.
Por mês, cada um paga 275 euros. O valor inclui a renda, as despesas de água, luz, gás, pequeno-almoço e jantar e o salário de Carla que lhes limpa a casa e lhes cozinha “muito bem” o jantar que é servido às 20h. Para o dia há caldo verde e pastéis de bacalhau, marca o quadro de lousa pendurado na cozinha.
Lá dentro, há uma hierarquia a respeitar, ainda que rejeitem qualquer associação à praxe. Os plebeus, que é como quem diz, os mais novos, estão encarregues de ir fazer as tarefas mais básicas, como levar o lixo, fazer pequenas obras ou ir buscar o correio. Os repúblicos, que já lá estão há mais tempo, tratam da gestão, da tesouraria.
Têm reuniões mensais onde apresentam as contas, o que precisam de investir ou mudar na casa. Na parede da sala, que vai acumulando a arte de quem por ali vai passando, fica a lista de quem está responsável por comprar comida que a Carla vai confeccionar.
"Normalmente as pessoas que cá entram têm 18, 19 anos. Muitas vezes a maior parte delas nunca fizeram nada em casa. O nosso objectivo aqui também passa por formar cidadãos", aponta o estudante de Gestão, ensinando uns aos outros como gerir uma casa.
A República "é uma coisa a prazo"
Reconhecem que está a ser “difícil” enfrentar este processo sozinhos. Contactaram a Universidade de Lisboa (UL) que lhes disse que não conseguia fazer nada, a não ser prestar-lhes apoio jurídico. Em finais de Fevereiro, tiveram uma reunião com a vereadora da Habitação da câmara de Lisboa que lhes disse que “precisava de fazer contactos dentro da câmara” para os conseguir ajudar.
Apesar de não atirarem a toalha ao chão, acreditam que o futuro da República “é uma coisa a prazo”. O objectivo dos 15 estudantes é conseguir arranjar uma casa alternativa para que possam realojar a República “como um todo”.
Já procuraram um novo espaço, mas admitem que as imobiliárias lhes viram as costas quando lhes dizem que são uma associação. “Quando tentamos contactar uma imobiliária à procura de um imóvel nestas condições, assim que dizemos que somos uma associação, dizem sempre que não estão interessados e desligam o telefone”, sublinha Francisco.
Fausto de Leite, advogado especializado em direito do trabalho, que também passou pelo Lar do Santo Condestável, nos anos de 1960, depois de ter sido “obrigado a fazer a mala e a ir estudar Direito para Lisboa porque ganhava miseravelmente” em São João da Madeira. Ficou no antigo lar dois anos lectivos. “Fui muito bem acolhido. É dar e receber”. A ideia há-de ser repetida quer por que ocupa a casa agora, quer por quem já a deixou.
É por isso que critica tanto a posição da Universidade de Lisboa, como a da câmara municipal: “É chocante a posição da UL que [diz] que não tem capacidade. Foi a UL (a então Universidade Técnica de Lisboa) que reconheceu a associação como república. E não faz nada? Não pode ser”, aponta. E recorda como por ali passaram nomes conhecidos, de diversas áreas, como Fernando Mangas Catarino, biólogo que esteve à frente do Jardim Botânico de Lisboa por mais de duas décadas.
“É uma tristeza deixar morrer uma coisa destas. Uma instituição que quer proteger quem vem para Lisboa”, lamenta Fausto Leite. Resta-lhes baterem-se na justiça para tentar aferir se os avisos prévios do senhorio foram feitos com a antecedência que o contrato prevê. O PÚBLICO tentou contactar o proprietário do imóvel, mas não recebeu qualquer resposta.
No prédio onde moram os estudantes, há já um andar destinado a alojamento local. Acreditam que a sua casa terá o mesmo destino. “Se a república acabar, cada um vai para seu lado. São 70 anos de história que acabam”, lamenta Rafael.