Custos com a tarifa social do gás passam para as empresas

A ERSE já aprovou os novos regulamentos do sector do gás natural que transferiram os custos de financiamento da tarifa social para a REN e para as comercializadoras, como definiu o Orçamento do Estado para 2018. Mas as dúvidas sobre a lei persistem.

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Fabio Augusto

O financiamento da tarifa social do gás natural tem tudo para ser mais um foco de tensão entre o Governo e as empresas de energia. A Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) publicou na terça-feira os novos regulamentos tarifários e das relações comerciais do sector do gás natural que já incluem a alteração introduzida pelo artigo 209º do Orçamento do Estado para 2018, que retirou o encargo com o financiamento da tarifa social da factura dos consumidores, transferindo-o para as empresas de gás natural. Estão em causa cerca de 1,4 milhões de euros, dos quais metade deverá ser paga pela REN.

Da interpretação que fez do texto da lei – que refere que os descontos “são suportados pelas empresas transportadoras e comercializadoras de gás natural na proporção do volume comercializado de gás no ano anterior” –, a ERSE assumiu no novo regulamento que os encargos terão de ser repartidos entre a REN Gasodutos, que tem a concessão do transporte de gás natural, e as comercializadoras de gás natural (quer as comercializadoras reguladas, quer as do mercado liberalizado).

Ainda que o universo de beneficiários da medida em nada se compare ao da tarifa social da electricidade – no caso do gás são cerca de 37 mil beneficiários e no da electricidade, 800 mil – pode constatar-se da leitura dos documentos da consulta pública, que as empresas, estejam no mercado regulado ou no mercado liberalizado, não vêem com bons olhos financiar o que dizem ser um instrumento de política social.

As que estão no mercado liberalizado, como a Endesa, queixam-se que a transferência dos custos põe em causa a sustentabilidade do sector. As que também estão no mercado regulado, como a Galp, que tem várias distribuidoras regionais com obrigação de comercialização de último recurso, temem pelo equilíbrio económico-fnanceiro dos seus contratos.

Sobre os novos regulamentos da ERSE, a REN, que ficará com a maior parte do encargo, diz que “não pode (…) concordar com a aparente imposição feita à concessionária da actividade de transporte de gás natural, por considerar violar o equilíbrio do contrato de concessão” que assinou com o Estado, e sublinha que a aplicação do artigo 209º do OE “carece de regulamentação” que “deve ser feita por lei” e não pelo regulador.

Mas a empresa nota desde logo que a imputação que lhe é feita do custo de financiamento da tarifa social é uma medida “contrária ao espírito que preside a organização sectorial do gás natural”, isto porque “faz recair sobre um operador privado e com actividade exclusivamente regulada uma obrigação de natureza social”.

A Galp, “enquanto accionista de empresas com actividade” regulada de comercialização diz que o modelo proposto prevê que “os custos incorridos não serão repercutidos em tarifa”, ou seja, não poderão ser recuperados enquanto proveitos regulados, e isso provocará “um desequilíbrio nestas empresas que não poderão adequar a sua base de custos a esta nova realidade”.

Assim, a Galp entende que a ERSE deveria “considerar” esta questão na avaliação do equilíbrio económico-financeiro dos comercializadores de último recurso, “nos termos estabelecidos nas respectivas licenças [das empresas] e nos próprios estatutos” do regulador.

Também o grupo EDP, que vendeu a EDP Gás à REN, mas manteve a obrigação de comercialização de último recurso, nota que as empresas reguladas “não têm a possibilidade de socializar estes custos” (ou seja, dividi-los pelos clientes finais), a menos que “tais custos sejam reconhecidos como proveitos da actividade”. Mas sobre isso, a ERSE já desfez dúvidas.

A entidade reguladora, que até já tinha sublinhado (quando lançou a consulta pública) que à semelhança do que sucede na tarifa social da electricidade não poderá aceitar que as empresas reguladas reflictam as despesas com a tarifa social do gás natural sobre os consumidores, diz apenas que irá “monitorizar a evolução destes custos”, de modo a garantir “um acompanhamento informado dos impactos das decisões do Estado neste sector”.

ERSE pede respostas ao legislador

Nos seus comentários, a Autoridade da Concorrência (AdC) refere que “a redacção da lei não acautela a repercussão dos custos da tarifa social nos clientes finais”, nem mesmo nos clientes vulneráveis que se destina a proteger. Se do lado das empresas reguladas se espera que a ERSE não deixe passar para as tarifas os custos de financiamento, nas empresas em mercado “o risco” existe. Por isso, a entidade liderada por Margarida Matos Rosa, defendia que a ERSE deveria buscar esclarecimentos junto do legislador, antes de aprovar os regulamentos.

A própria ERSE volta a reconhecer que o texto da norma é pouco claro, em particular quando se refere genericamente a “empresas transportadoras”. Na segunda-feira, quando divulgou a proposta de tarifas reguladas para vigorar a partir de 1 de Julho (propondo uma descida de 0,2%), a ERSE reconheceu que subsistem “dúvidas interpretativas quanto aos termos da norma” 209º do OE. As dúvidas recolhidas na consulta pública motivaram até o envio à Assembleia da República (a 31 de Janeiro) de um pedido de clarificação da norma.

Se os “esclarecimentos pertinentes” surgirem a tempo da decisão final sobre as tarifas que vão entrar em vigor a 1 de Julho, a ERSE admite fazer ajustamentos, caso contrário o entendimento é o de que “os custos decorrentes da aplicação da tarifa social passam a ser suportados pelo operador da rede de transporte [a REN] e pelos comercializadores de gás natural”. Ainda assim, a entidade reguladora diz que voltou a insistir sobre o tema junto do Parlamento no dia 16 de Março.

A EDP (que tem a maior factura com a tarifa social da electricidade e que nesta consulta pública sobre o gás natural faz uma larga exposição sobre os motivos pelos quais entende que a tarifa social deve ser financiada pelo Estado) considerou o esforço da ERSE para “definir os conceitos a aplicar bem como a forma de repartição de custos” na “ausência de decreto-lei de execução do OE” como “desadequado e arriscado”.

Concorrentes empurram custos para a EDP

Apesar de destacar a sua “discordância de fundo quanto ao modelo de financiamento” da tarifa social, a Galp nota ainda assim que a repartição de encargos entre a REN e os comercializadores em função dos volumes comercializados “fará incidir a maioria dos custos sobre os grandes consumidores de gás natural”, ou seja, a indústria, “prejudicando a competitividade de empresas especialmente relevantes para a economia nacional”.

Por isso, defende a “possibilidade de se considerar alguma ponderação”, definindo-se como factor preferencial de alocação de custos “os volumes comercializados destinados ao segmento residencial, a que pertencem os clientes beneficiários deste apoio social”.

Neste caso, a empresa mais afectada pela medida deveria ser a EDP Comercial, tendo em conta que a empresa lidera o mercado liberalizado em número de clientes e tinha uma quota de 57% em Novembro (dos 1,4 milhões de clientes de gás natural em Portugal, só restam perto de 300 mil no mercado regulado). A solução apontada pela Galp teria o mesmo efeito que a solução apontada pela Gas Fenosa, que defendeu ser mais “razoável aplicar um critério de repartição entre os comercializadores pelo número de clientes” (e não pelos volumes comercializados).

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