Mas, afinal, que Açores são estes de Pauliana Valente Pimentel?

São jovens, muito jovens, da ilha de São Miguel, uns de zonas pobres, outras de casas ricas, unidos pelo olhar próximo e poético de Pauliana Valente Pimentel. É a exposição O Narcisismo das Pequenas Diferenças, que é inaugurada esta quinta-feira em Ponta Delgada, no festival Tremor.

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“Não me interessa o lado decadente, daí precisar de tempo e proximidade para estar com as pessoas, tentando apreende-las nas suas linguagens e autenticidade."
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Na construção da identidade dos açorianos da ilha de São Miguel o nome de família tem um grande peso. “A primeira pergunta que te fazem é: de que família é que tu és?”, reflecte Pauliana Valente Pimentel (Lisboa, 1975), que ali esteve a fotografar o ano passado, daí resultando a exposição O Narcisismo das Pequenas Diferenças, que inaugura esta quinta-feira, dia 22 de Março, na Galeria Fonseca Macedo, em Ponta Delgada, no contexto do festival Tremor, resultando o projecto de uma co-produção onde participou também o Walk&Talk.

Como noutros projectos que a artista visual e fotógrafa desenvolveu nos últimos anos, como Jovens de Atenas (2012), The Passenger (2014), Behaviour of Being (2015) ou Quel Pedra (2016), com o qual foi finalista do prémio Novo Banco, interessou-lhe retratar jovens menores de idade, percebendo a que grupos pertencem, que dinâmicas professam ou que tipo de manifestações lhes interessa. “Quando parti para o terreno já ia com essa ideia em mente, até pelo contexto da ilha, parecendo parada no tempo, fechada, sem grandes misturas sociais. Mas depois cheguei lá, há cerca de um ano, e não consegui fotografar.”

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"Havia imensos jovens em Rabo de Peixe e pensei que podia fazer algo apenas só sobre aquele contexto, mas ao mesmo tempo não queria ficar confinada e decidi que queria ver outras realidades."

A paisagem impôs-se. O verde, a natureza, a sua imponência. “Por um lado era tudo muito bilhete-postal, por outro senti as pessoas um pouco fechadas e fiquei ansiosa. Então, resolvi estar, ver e conhecer.” Onde se sentiu de imediato acolhida foi em Rabo de Peixe. “Havia imensos jovens e pensei que podia fazer algo apenas só sobre aquele contexto, mas ao mesmo tempo não queria ficar confinada àquilo e decidi que queria ver outras realidades, nomeadamente um tipo de famílias mais enriquecidas, supostamente conservadoras e muito fechadas que as pessoas não conhecem muito bem. Percebi que iria ser mais difícil, mas que fazer esse paralelo poderia ser mais enriquecedor.”  

Uns meses mais tarde haveria de regressar para fotografar. E depois uma outra vez. Antes documentou-se e tentou perceber o que havia sido feito artisticamente sobre os contextos que lhe interessavam. Ficou impressionada com a obra documental Rabo de Peixe, de Joaquim Pinto e Nuno Leonel, filmada entre 1998 e 2002. “É maravilhosa a forma como pegam naqueles personagens e desenvolvem uma história no interior daquela realidade”, justifica. “Foi aí que vi os homens a tocarem castanholas nas festas à volta da fogueira e percebi que era importante estar naqueles rituais para conhecer a população. Mas esse filme foi a excepção. A maior parte das coisas que vi eram pitorescas ou de olhar fugidio.”

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A fotógrafa inaugura O Narcisismo das Pequenas Diferenças quinta-feira em Ponta Delgada, no festival Tremor

Em Rabo de Peixe, inicialmente, não percebiam a sua curiosidade. “Existe a consciência de que são marginalizados e perguntavam-me porque é que os desejava fotografar, a eles, que as pessoas da cidade identificavam como pobres ou marginais. Há ainda esse estigma e desconfiança. Quando ia de Ponta Delgada para lá, quem me conduzia receava deixar-me lá sozinha. Há ainda essa coisa do lugar inseguro.”

Mas o que ela foi encontrar em Rabo de Peixe foram duas realidades distintas. “Aquilo não é só uma ilha dentro da ilha, como também comporta no seu interior duas ilhas: a Rabo de Peixe mar, que tem pouco a ver com a Rabo de Peixe terra. O mar é dos pescadores e dos mais pobres. A terra é das zonas mais ricas de São Miguel, pessoas que trabalham no atum, emigrantes do Canadá, famílias abastadas, com grandes casas ou quintas. São contíguas, mas com uma composição social diversa. Em casa dos avós da Britney, que fotografei, havia uma grande influência da América do Norte, até na forma como os animais embalsamados (ursos e veados) eram dispostos. Existe abundância.”

Na Rabo de Peixe dos pescadores o que a surpreendeu foi a numerosa comunidade gay. “Gostam de se vestir de mulher, tal como havia encontrado em Cabo Verde, e realmente são muitos”, afirma. “Por outro lado surpreenderam-me os paradoxos. Vêem-se miúdas com sete anos, maquilhadas e vestidas de forma sexy, projectando emancipação, mas ao mesmo tempo, no Verão, as mulheres ainda vão vestidas para a água e se queria fotografar alguma tinha que pedir autorização aos maridos. E o que é engraçado é que estes rituais têm territórios muito localizados. Às vezes basta atravessar uma rua e as coisas mudam.”

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“Estavam a mostrar-me um trabalho de moda que haviam feito para a escola e perguntei-lhes onde tinham ido buscar as roupas e nisto foram ao baú da mãe buscar roupas dos anos 60, acabando por vesti-las. E foi nessa situação que as fotografei.”

É um contexto com muitas camadas, afirma. “São muito abertos para algumas coisas, por exemplo na tolerância para com a comunidade gay, mas para outras são fechados. Um dia estava a observar homens do mar que traziam grandes peixes e um deles, talvez o mais forte, estava totalmente maquilhado, o que demonstra essa aceitação entre eles. Se alguém de Ponta Delgada assistisse à cena provavelmente diria que eram prostitutos ou coisa do género e sinceramente não vi nada disso.”

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Por vezes, de manhã, estava na companhia de jovens com menos de 18 anos de Rabo de Peixe e, à tarde, com jovens provenientes de algumas das famílias mais tradicionais de Ponta Delgada. Ou vice-versa.

Por vezes, de manhã, estava na companhia de jovens com menos de 18 anos de Rabo de Peixe e, à tarde, com jovens provenientes de algumas das famílias mais tradicionais de Ponta Delgada. Ou vice-versa. “Às vezes vinha de casas gigantes que mais pareciam museus e depois ia para Rabo de Peixe, mas em todos os locais fui muito bem recebida. Talvez o facto de estarem numa ilha, a partir da proximidade que se vai gerando, intensifique essa vontade de comunicar e partilhar”, reflecte.

E dá um exemplo, apontando para uma foto. “Este miúdo vive com a mãe e cinco empregadas e deseja ser militar. A mãe teve algumas preocupações comigo – não quis que o fotografasse, por exemplo, a comer com talheres de prata, como acontece habitualmente – mas foram de uma receptividade inexcedível”, afirma, acrescentando que aquilo que lhe interessa, para lá dos contextos, da captação do espírito dos lugares, dos ambientes e das situações, é a dignificação das pessoas.

“Não me interessa o lado decadente, daí precisar de tempo e proximidade para estar com as pessoas, tentando apreende-las nas suas linguagens e autenticidade. E daí também ter decidido que as fotos iriam todas ter o mesmo tamanho, sendo colocadas em conjunto, quase como se o visitante estivesse a ver um filme, onde por vezes nem sempre é fácil identificar a que contextos pertencem. Os próprios vão identificar esses sinais de forma rápida. Mas isso não é líquido para quem esteja distante daqueles universos. Que Açores são estes, afinal? Quero provocar esse diálogo numa sociedade que acaba por ser cerrada.”  

Apesar da convivência diária, não existe uma acção documental. O que há é um olhar que não julga, uma visão sobre o quotidiano que é ao mesmo tempo natural, estranha e poética. Algumas fotos até podem parecer encenadas, mas ela diz que não. “Quando muito algumas são semiencenadas, por decorrerem de qualquer coisa prévia.” E dá um exemplo, apontando para uma foto onde se vêem quatro adolescentes, descalças, fixando a câmara. “Estavam a mostrar-me um trabalho de moda que haviam feito para a escola e perguntei-lhes onde tinham ido buscar as roupas e nisto foram ao baú da mãe buscar roupas dos anos 60, acabando por vesti-las. E foi nessa situação que as fotografei.”

Do conjunto de fotos, apenas uma reflecte os Açores do verde e da natureza, e ainda assim, de forma inesperada. “Tinha fotos muito bonitas da caldeira, por exemplo, mas esta exposição foi pensada sobretudo para aqueles jovens. Todos querem sair, estudar e conhecer outros mundos, mas nem todos o conseguirão. O liceu é o local onde se cruzam, mas não existem muitos locais onde isso aconteça. Também gostava de agitar isso, convidá-los para a inauguração da exposição e misturá-los, e no Walk&Talk, em Julho, vou fazer um slideshow nocturno em Rabo de Peixe. Vou para a rua e tirar isto da galeria.”

Depois, lá mais para o final do ano, tudo indica que a presente exposição, que estará patente até 28 de Abril, será mostrada em Lisboa. Para ela é mais um capítulo no seu percurso. “Esta exposição representa para mim uma consolidação do meu trabalho em termos de linguagem e depois também me parece que vai lançar a discussão e é isso que também procuro sempre. Há no meu trabalho uma preocupação política, social, interventiva. Gosto quando existe diálogo para além das imagens”, afirma, recuando até há um ano atrás quando chegou a São Miguel. “Fui encontrar uma sociedade muito fechada num impacto inicial, mas depois fui percebendo que existem muitas outras camadas por ali.” Da próxima vez que em São Miguel lhe perguntarem a que família pertence, já pode responder que ali se sente em família. 

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