Nacionalistas hindus criaram comissão para reescrever a história

Governo do Presidente Narendra Modi quer usar a ciência para tentar demonstrar que a população hindu actual descende dos primeiros habitantes do território — ainda que as provas digam o contrário.

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Governo do primeiro-ministro nacionalista hindu Narendra Modi quer usar a história para reforçar controlo sobre o país Adnan Abidi /REUTERS

Um grupo de académicos indianos juntou-se num bungalow branco numa avenida muito arborizada no centro de Nova Deli na primeira semana de Janeiro de 2017 para discutir como podiam reescrever a história indiana.

O Governo do primeiro-ministro nacionalista hindu Narendra Modi tinha nomeado discretamente esta comissão de 14 especialistas – 12 historiadores e dois burocratas – seis meses antes. Actas das reuniões, vistas pela Reuters, e entrevistas com membros do comité de peritos, demonstram os seus objectivos: usar evidências científicas, como achados arqueológicos e ADN para tentar provar que a população hindu actual descende directamente dos primeiros habitantes do território, há muitos milhares de anos, e defender a tese de que as antigas escrituras hindus não descrevem mitos, mas sim factos.

Entrevistas com membros desta comissão e ministros no Governo Modi sugerem que as ambições dos nacionalistas hindus vão muito para além de manter o poder político nesta nação de 1,3 mil milhões de pessoas, que é um caleidoscópio de religiões. Querem acabar por moldar a identidade nacional indiana à imagem das suas crenças religiosas, provar que a Índia é uma nação de hindus e para hindus.

Ao fazê-lo, desafiam a narrativa mais multicultural que tem dominado desde o tempo do domínio britânico, a de que que a Índia moderna é um mosaico resultante de migrações, invasões e conversões. Esta visão baseia-se em factos demográficos: apesar de a maioria dos indianos ser hindu, há cerca de 240 milhões de indianos muçulmanos ou de outras religiões – ou seja, um quinto da população.

“Pediram-me para apresentar um relatório que ajude o Governo a reescrever certos aspectos da história antiga”, disse à Reuters o presidente do comité, K.N. Dikshit. O criador da comissão, o ministro da Cultura, Mahesh Sharma, confirmou numa entrevista que o trabalho do grupo fazia parte de um plano mais alargado de revisão da história da Índia.

Para os muçulmanos indianos, que registam mais incidentes de violência religiosa e discriminação desde que Modi tomou posse em 2014, isto é de mau agouro. “Os muçulmanos nunca se sentiram tão marginalizados desde a independência”, disse Asaduddin Owaisi, líder do partido muçulmano All India Majlis-e-Ittehadul Muslimeen. “O Governo quer que os muçulmanos vivam na Índia como cidadãos de segunda classe”, afirmou.

Modi não respondeu a um pedido de comentário para este artigo.

Na sala de aula

Na vanguarda deste combate ideológico pela história indiana está o grupo nacionalista hindu Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS). Ajudou a levar à vitória o partido Bharatiya Janata Party (BJP), de Modi, em 2014 e alguns dos seus membros são ministros, como os da Agricultura, Estradas ou Segurança Interna.

O RSS defende que os antepassados de todas as pessoas de origem indiana – incluindo os 172 milhões de muçulmanos – eram hindus, e que têm de aceitar estas raízes comuns como parte da Bharat Mata, ou mãe Índia. Modi é membro do RSS desde a infância.

Uma biografia do ministro da Cultura diz que Sharma, médico e presidente de uma cadeia de hospitais, é um “seguidor dedicado” do RSS há muitos anos. Sharma disse à Reuters esperar que as conclusões da comissão – designada nos documentos oficiais como comité “para o estudo holístico da origem e evolução da cultura indiana desde há 12 mil anos antes do presente e a sua interface com outras culturas do mundo” — cheguem aos manuais escolares e à investigação científica.

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Voluntários da Rashtriya Swayamsevak Sangh na cidade de Ahmedabad Amit Dave/REUTERS

Com um orçamento anual de 400 milhões para investigação histórica, arqueologia e artes, o Ministério da Cultura é um local certo para iniciar uma campanha de revisão histórica.

Sharma disse que esta versão da história de “hindus primeiro” vai ser incluída no programa de uma disciplina que há muito ensina que os povos da Ásia Central chegaram à Índia muito mais recentemente, há cerca de 3000 ou 4000 anos, e transformaram a população – uma teoria que foi abraçada durante o domínio britânico.

Nacionalistas hindus e altos responsáveis no partido de Modi rejeitam a ideia e que Índia foi forjada a partir de uma imigração em massa. Acreditam que a população actual hindu é descendente dos primeiros habitantes do território.

Primazia religiosa

Mas porque é tão importante para os nacionalistas hindus a questão de quem chegou primeiro ao território que hoje é a Índia? “Ao terem primazia enquanto cidadãos num reino hindu, isso quer dizer que a sua religião fundadora não pode ser importada”, explica a historiadora Romila Thapar.

Para reivindicar essa primazia, os nacionalistas têm de alegar que descendem de antepassados e de uma religião que eram indígenas, disse Thapar, 86 anos, que foi durante décadas professora na Universidade Jawaharlal Nehru em Nova Deli.

O primeiro líder da Índia após a independência, Jawaharlal Nehru, que promoveu um Estado secular e tolerância para com os muçulmanos da Índia, disse que era “totalmente falacioso falar da cultura indiana como cultura hindu”.

Foi sob esse ponto de vista que Nehru e depois o seu Partido do Congresso governaram durante mais de 50 anos. Os direitos das minorias – incluindo a proibição da discriminação com base na religião – estão estabelecidos na Constituição indiana, de que Nehru foi signatário em 1950.

Shashi Tharoor, um membro importante do Partido do Congresso, disse que há uma campanha liderada por hindus de direita “que tenta reinventar a própria ideia do que é a Índia”. “Durante sete décadas após a independência, o que definia ser indiano assentava na fé no pluralismo do país”, apontou Tharoor, mas a ascensão do nacionalismo hindu trouxe com ela “um sentimento de superioridade cultural”.

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