Não é só a paisagem que faz com que estas montanhas sejam mágicas

No território que abrange as serras da Freita, Arada, Arestal e Montemuro há muito para descobrir e sentir. O desafio passa por fazê-lo ao longo de uma rota centrada em atractivos ligados à água e à pedra.

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Palavra de quem tem vertigens e é pouco dada a passear por paisagens escarpadas: há, ao longo das serras da Freita, Arada, Arestal e Montemuro — ou seja, por entre subidas e descidas, curvas e contracurvas —, uma rota que vale bem a pena ser explorada. Tanto mais porque não é só pela beleza das suas paisagens e biodiversidade que ela nos encanta. Em cada aldeia, por mais pequena que seja, há um povo pronto para nos receber de braços abertos e servir-nos as suas melhores (e muitas) iguarias. É assim no território das Montanhas Mágicas (ver caixa), entre os rios Douro e Vouga, um destino que conta com mais de uma centena de locais que merecem ser visitados. Integram a Rota da Água e da Pedra e são, exactamente, 114 pontos de interesse no total.

Não tem que os percorrer de uma assentada, uma vez que a proposta passa por ir (re)visitando aquelas paragens de forma tranquila e com tempo para relaxar. Foi o que fez a Fugas num périplo preenchido com passeios a pé e de barco, muitas (mas mesmo muitas) degustações gastronómicas e uma ida às termas. Sever do Vouga, no distrito de Aveiro, São Pedro do Sul e Castro Daire, em Viseu, foram os municípios por onde iniciámos a descoberta deste território de paisagem diversificada — tão depressa está a passear junto a cascatas, pastos, como de repente está entre rochedos.

Ficaram a faltar os restantes quatro concelhos que integram as Montanhas Mágicas — Arouca, Castelo de Paiva, Cinfães e Vale de Cambra —, e umas boas dezenas de pontos de interesse da rota turística que procura valorizar atractivos ligados à água e à pedra — monumentos, aldeias, levadas, praias fluviais, trilhos pedestres e cicláveis, etc.. Mas, com o aproximar dos dias de bom tempo, certamente surgirão outras oportunidades.

Nas margens do rio Vouga

É no município de Sever do Vouga — terra do mirtilo (e não só) — que damos início à descoberta da Rota da Água e da Pedra. E sem motivos para queixumes: aquela sexta-feira de Fevereiro, que tinha começado com temperaturas bem baixas, acabou por se transformar num belo dia de (quase) Primavera. A aventura começa junto à antiga estação de Paradela, na antiga linha do Vouga, com uma pequena caminhada. Era aqui, junto às margens do rio Vouga, que passava o troço ferroviário que ligava a linha do Norte à do Dão (entre Espinho e Viseu), numa extensão de 140 quilómetros.

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Os comboios deixaram de circular em 1990 mas o seu traçado acabou por ser transformado em ecopista, ao longo de mais de 10 quilómetros de extensão. Com essa nota digna de registo: um dos seus pontos de passagem é a bonita ponte do Poço de Santiago (a imagem desta estrutura, com 28 metros de altura, é um dos grandes postais de Sever do Vouga).

Do poço de Santiago seguimos até à Quinta do Barco, onde se encontra instalada uma praia fluvial equipada com infra-estruturas para ir a banhos ou praticar desportos de aventura, balneários e parque infantil. O espelho de água é magnífico mas, desta vez, não deu para mergulhar. A alternativa passou por assentar arraiais no Restaurante Quinta do Barco — sempre com vista para o rio — e degustar as delícias gastronómicas de Sever do Vouga, preparadas pela chef Alice Bruçó: lampreia à bordalesa, frango à padeiro e gelado de mirtilo — isto já para nem falar nos petiscos de entrada.

Terminado o almoço, nova proposta à beira da água (ou dentro dela, para os que se deixaram convencer de que um fato de neoprene protegia o corpo do frio), agora na albufeira de Ribeiradio, que reúne condições de excelência para a prática de desportos náuticos. As suas águas calmas levaram a Desafios – Desporto e Aventura (já tínhamos andado à boleia dela, há uns anos, numa caminhada) a escolher este local para a prática de actividades como stand up paddle, caiaque ou passeios de lancha.

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Cabe a cada um escolher e efectuar, previamente, a sua marcação junto da empresa de desportos de aventura. E sem receios de gastar energia a mais, pois, não muito longe dali, encontrarão o sítio perfeito para repor todas as calorias (e mais algumas). Chama-se Cantinho da Eira, fica no lugar de Couto de Baixo, em Couto de Esteves, e só funciona mediante reserva. O que o torna tão especial? O sabor da comida preparada no forno a lenha (vitela ou cabrito), as sobremesas bem tradicionais (leite-creme, arroz doce ou doce de mirtilo) e, acima de tudo, a atenção do senhor José e da dona Maria Alice — que são, simultaneamente, quem confecciona, serve a comida e gere o espaço. 

A aldeia onde o “morto matou o vivo”

Novo dia, novo destino. Ao segundo dia, o périplo da Fugas pela Rota da Água e da Pedra ruma até ao território do município de São Pedro do Sul, no distrito de Viseu. Primeiro, em sentido ascendente, serra acima, com paragem junto às mariolas da Arada — estruturas de pedra que servem para marcar os caminhos e orientar os pastores —, e no Portal do Inferno — ponto de passagem estreita que se ergue entre dois vales (Covas do Monte e Drave) e oferece vistas vertiginosas — este último, geossítio do Arouca Geopark.

Depois, a descer, praticamente a pique (lembram-se da parte das vertigens?), rumo à aldeia da Pena, onde é alimentada a lenda de um “morto que matou o vivo”. A história é bem simples e não assenta em nenhuma teoria esotérica: quando um caixão era transportado até ao cemitério mais próximo (no tempo em que ainda não existia um na Pena), acabou por resvalar e matou quem vinha atrás.

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Lenda ou não, a verdade é que o antigo caminho de acesso à povoação mais próxima, Covas do Rio, se chama “Caminho do morto que matou o vivo” e é de uma grande exigência — há uma parte do percurso, inclusive, não recomendável a quem tem medo das alturas. Mas vale a pena tentar percorrê-lo, mesmo que não seja na totalidade, e apreciar a paisagem que envolve esta pequena aldeia — a Pena faz parte da rede Aldeias de Portugal — onde habitam apenas seis pessoas e que mantém bem preservado o seu casario de xisto e ardósia.

E também para ganhar apetite para almoçar na Adega Típica da Pena, o restaurante da aldeia, que faz jus à fama da gastronomia daquela região. O cabrito e a vitela assados em forno a lenha e a feijoada são algumas das especialidades da casa, que parece deixar saudades a quem por lá passa: as paredes interiores estão repletas de pequenos pedaços de papel escritos por clientes que por lá passaram, como o do António, que comeu lá “no último dia de 2017”.

E sim, cumprida a visita à Pena faz muito mais sentido a quadra que vimos escrita numa ardósia, na parede de uma das habitações da aldeia: “Vale a pena vir à Pena e ficar com a saudade; escrever-lhe uma quadra; dizer adeus à cidade”.

Rumo ao alto de São Macário

Estão a ver aquela descida vertiginosa que dá acesso à Pena? Agora é feita a subir, a torcer para que não apareça nenhum carro pela frente — além de íngreme, a estrada é estreita —, em direcção ao alto da serra de São Macário. São 1054 metros de altitude e, como tivemos sorte com o tempo, dá para avistar, a este e a norte, as serras e vales das Montanhas Mágicas, e, a sul, as serras do Caramulo e da Estrela.

É neste local que se encontra a ermida e a capela de São Macário, locais de romaria no fim do mês de Julho. Tudo em homenagem a um homem que, segundo reza a lenda, por acidente, matou o seu pai, vindo a refugiar-se, até ao fim dos seus dias, no cimo da serra, onde se alimentava de ervas e gafanhotos e se penitenciava dia e noite, ganhando assim fama de santo.

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Crenças à parte, este é um dos locais de visita obrigatória em São Pedro do Sul, terra tradicionalmente conhecida pelas suas termas, exploradas desde a antiguidade — conforme comprovam as ruínas romanas existentes no centro do complexo termal. Há quem garanta que, actualmente, São Pedro do Sul é a maior e mais desenvolvida estância termal (balneários Rainha D. Amélia e D. Afonso Henriques) da Península Ibérica, recebendo mais de 20.000 aquistas por ano. Não ousamos contrariar a tese, especialmente depois daquele tratamento de duche com massagem que fizemos no Balneário Rainha D. Amélia.

Particularmente indicadas para o tratamento de problemas dermatológicos, das vias respiratórias e na área da medicina física e da reabilitação, as águas termais de São Pedro do Sul servem ainda de base a vários tratamentos de bem-estar e relaxamento, bem como a uma linha de produtos dermocosméticos com a assinatura desta estância termal (AQVA).

O melhor de Castro Daire são as pessoas

Verdade seja dita: depois de dois dias a subir e descer montanhas, a apreciar paisagens naturais únicas, a degustar deliciosas iguarias, a fazer tratamentos termais, já não era nada fácil sermos surpreendidos. Mas fomos. O que de alguma forma comprova que cada município, cada aldeia, cada recanto das Montanhas Mágicas tem os seus próprios atributos e atractivos — nada se repete neste território (nem mesmo a forma de cozinhar a vitela, que foi prato obrigatório nos três concelhos deste roteiro).

O dia de viagem dedicado à serra de Montemuro e vale do Paiva começou numa aldeia que, pelo menos pelo nome, para muitas pessoas já dispensa apresentações: Campo Benfeito. Além de pertencer à rede Aldeias de Portugal, é esta a terra que alberga o Teatro Regional da Serra do Montemuro e é também aqui que se encontram sediadas as Capuchinhas, uma cooperativa de artesanato que produz peças de burel e linho.

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São, acima de tudo, um grupo de mulheres que, há cerca de 30 anos, para evitarem sair da terra (como aconteceu com outros habitantes), lançaram mãos à obra. “Fizemos formação em costura, chamámos as nossas mães para nos ensinarem a tecer e começámos a produzir estas peças de vestuário”, conta Henriqueta Félix, uma das responsáveis do grupo cujo nome é inspirado “na capucha, capa tradicional da mulher serrana”.

A aposta das Capuchinhas vingou e, com a ajuda de uma estilista (Paula Caria), produzem uma colecção por ano — um ano dedicada ao Verão; noutro, com peças de Inverno. E, melhor do que isso, criam empregos para as mulheres da aldeia plantada no planalto do Balsemão e na qual vale a pena perder algum tempo a apreciar e a explorar a paisagem. Há um trilho pedestre que passa por ali (Castro Daire tem nove), ajudando à descoberta dos lameiros, galerias ribeirinhas, carvalhais, bem com uma impressionante área de turfeira — considerada uma das mais importantes em Portugal.

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Para a despedida, ficou reservado mais um momento de degustação, preparado pela Confraria do Bolo Podre e animado por música tradicional de Montemuro. À espera do grupo, na Quinta da Rabaçosa, junto às margens do rio Paiva, estava uma mesa farta — na realidade, eram várias mesas —, carregada de chouriça assada, bola de bacalhau, bola de carne, torresmos à Montemuro, trufa fário de escabeche, vitela à Montemuro e arroz de feijão com salpicão, entre outras iguarias. Sim, leu bem, havia ainda mais. Isto para já nem falar na mesa das sobremesas — pudim de bolo podre, bolo podre com queijo, rabanadas, fritas de chila, baba serrana, murmúrios, etc. — e na prova de licores.

Tudo isto servido com o primor e a atenção dos elementos da confraria que presta homenagem ao bolo doce que de podre só tem mesmo o nome. Devia ser a isto que o presidente da câmara municipal se queria referir quando, no início da visita, anunciava que Castro Daire tinha muitas coisas boas, mas o melhor de tudo eram mesmo as suas gentes. E, bem vistas as coisas, deve ser também esta forma de bem receber que faz com que estas montanhas sejam mágicas.

A Fugas viajou a convite da ADRIMAG

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