“O assédio devia estar tipificado na lei como crime”

Fátima Messias, coordenadora da comissão para a igualdade da CGTP, lamenta que as alterações legislativas feitas no ano passado não tenham ido mais longe e defende que as desigualdades entre homens e mulheres no mercado de trabalho devem resolver-se na contratação colectiva.

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Fátima Messias, coordenadora da comissão para a igualdade da CGTP Miguel Manso
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Dirigente da CGTP alerta que a mulher tem a igualdade consagrada na lei, mas não no trabalho e na vida Miguel Manso

O assédio sexual é um problema real nos locais de trabalho, mas Fátima Messias alerta que os ritmos de trabalho intensos, a precariedade ou as dificuldades de conciliação do emprego com a vida privada ganham maior expressão entre as preocupações dos trabalhadores portugueses, em particular as mulheres.

A CGTP tem recebido mais queixas de assédio sexual no local de trabalho na sequência do movimento que se tem criado à volta do tema, em particular nos Estados Unidos?
Não. Nem na central nem nos sindicatos.

Um estudo recente revela que 12,6% da população activa portuguesa já viveu ao longo da sua vida profissional uma situação de assédio sexual e que a percentagem de mulheres confrontadas com esta situação é quase o dobro da dos homens. O que justifica o reduzido número de denúncias que vos chegam?
Pode haver múltiplas razões, entre elas o preconceito e o medo. Nos locais de trabalho até podem coexistir problemas de assédio sexual com assédio psicológico, mas a pressão é tão grande, os ritmos de trabalho são tão intensos, o problema da conciliação é tão forte e a precariedade tem tantos problemas complexos que, no meio desse bolo, não é o assédio sexual que é mais sentido pelos trabalhadores. O que acontece é que muitas situações podem começar como assédio sexual, em particular sobre mulheres e em especial vindo das chefias, e depois transformam-se em assédio moral e psicológico quando não são correspondidos. 

A CGTP tem uma campanha no terreno que visa alertar para o problema do assédio psicológico. Teve efeitos positivos nos locais de trabalho?
Quando lançámos a campanha “Romper com o Assédio” começaram a chegar-nos inúmeros mails, porque as pessoas começaram a identificar-se com o fenómeno de ser posto de parte, de não ocupação efectiva do posto de trabalho, de humilhações sucessivas. Os trabalhadores pensavam que tinham tido azar na vida ou com o chefe e não identificavam o que lhes estava a acontecer como um problema que é penalizado e sancionável pela lei.

A nossa campanha, que lançámos em 2015 e vai até 2019, serviu como sinal de alerta. Quando o documento surgiu nos locais de trabalho, os próprios assediadores e assediadoras — que também as há — viram-se reflectidos ao espelho. Temos o caso de um call center que tinha um responsável de um sector que era de tal forma opressivo que os trabalhadores, quando ele gritava ou cronometrava o trabalho, levantavam o folheto distribuído pelos sindicatos e isso teve um efeito de abanar aquele local de trabalho.

Como é que se distingue uma situação de conflito laboral de uma situação de assédio?
Temos conflitos que não são assédio, porque não têm uma dimensão de processo deliberado e é possível ultrapassá-los. O assédio é algo mais refinado, que tem um fio condutor, que visa atacar a pessoa e pôr em causa a sua relação com o local de trabalho, com consequências na sua saúde e na sua vida privada.

No ano passado entraram em vigor alterações ao Código do Trabalho e à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas que têm como objectivo reforçar a prevenção do assédio no trabalho. Essas alterações já tiveram efeitos?
Achamos que a lei ficou muito aquém das necessidades. Há pelo menos duas matérias que precisavam de ter sido alteradas para que a lei fosse eficaz. Uma delas é o ónus da prova. Quando o assédio é motivado por factores discriminatórios, a prova compete à entidade empregadora; ora, nem todo o assédio é motivado por factores de discriminação de género, de idade... a maior parte das situações não entram nessa definição.

Por outro lado, a lei prevê a responsabilização do empregador pela reparação dos danos emergentes de doenças profissionais resultantes da prática de assédio, mas isso depende de uma regulamentação que ainda não foi feita. A lei também prevê a protecção das testemunhas, mas só enquanto decorre o processo.

Acima de tudo seria importante que os responsáveis pela prática de assédio fossem verdadeiramente penalizados. O assédio devia estar tipificado como um crime. Por enquanto é uma contra-ordenação grave, mas devia ser mais do que isso.

A prova é muitas vezes o principal problema nos casos que chegam a tribunal?
Não chegam muitos casos a tribunal e temos de facto o problema da constituição da prova. Em algumas situações consegue-se, ou porque está em causa a violação do direito à ocupação efectiva do posto de trabalho ou porque se conseguiu constituir a prova escrita ou testemunhal de determinados comportamentos. Mas além da prova, temos uma particularidade ingrata: é que em muitos dos processos que chegam a tribunal as pessoas já saíram da empresa porque não aguentaram mais. O que nos interessa é resolver o problema sem que as pessoas sejam obrigadas a despedir-se.

As mulheres continuam a ser um dos elos mais frágeis do mercado de trabalho. O que é que as coloca nessa posição?
As mulheres ganham em média menos do que os homens, são também mais abrangidas pelo salário mínimo nacional e gastam mais 1h40 por dia do que os homens no chamado trabalho não remunerado [tarefas domésticas e familiares]. Por outro lado, as mulheres são mais vítimas de assédio e mais afectadas por doenças profissionais. Cada vez mais, no mundo do trabalho, as pessoas têm de funcionar sempre e têm de estar sempre disponíveis. E a mulher ainda é vista como alguém que tem menos disponibilidade por causa do seu papel de cuidadora dos filhos ou dos idosos. E em períodos de retrocesso social como os que vivemos nos anos da troika e do anterior Governo essas perspectivas vêm ao de cima com uma brutalidade enorme. Pensa-se que já evoluímos e afinal não evoluímos nada. A mulher tem a igualdade consagrada na lei, mas não a tem no trabalho e na vida.

Qual o papel da contratação colectiva na redução das desigualdades?
A contratação colectiva pode e deve dar resposta a isto. Responderia melhor se não estivesse bloqueada. A não existência de contratação colectiva tem provocado efeitos devastadores nos locais de trabalho, porque as empresas passaram a disponibilizar dinheiro mais para as remunerações variáveis do que para a actualização dos salários. E as remunerações variáveis quase sempre assentam em avaliações de desempenho que têm uma medida comum, a disponibilidade e a assiduidade. E aí a mulher sai penalizada.

Os temas da desigualdade e da conciliação entre o trabalho e a vida pessoal e familiar estão presentes na contratação colectiva?
Da parte dos sindicatos sim. A resposta do outro lado geralmente é negativa. Estamos a preparar um clausulado de referência para confrontar o patronato com cláusulas específicas sobre a questão da igualdade. Mas o próprio patronato desvaloriza e não tem interesse nestas matérias e remete para o que está na lei. Mas cada sector é um caso e tem as suas especificidades. Temos situações de entidades patronais que não respeitam o direito de amamentação quase como se houvesse um desconhecimento do factor biológico da questão.

No ano passado, o sector do calçado deu um passo significativo na eliminação das desigualdades salariais entre homens e mulheres. Há outros sectores que também já deram passos nesse sentido?
No sector da cortiça, em 2008. Na altura, as trabalhadoras corticeiras ganhavam menos 96 euros por mês do que os homens para trabalho de valor igual e no contrato colectivo foi feito um acordo a oito anos em que as trabalhadoras tinham, além dos aumentos salariais, uma actualização suplementar. Temos também alguns acordos de empresa no sector vidreiro, em que se fez uma majoração para ir aproximando o salário das mulheres do dos homens.

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