Contra o statu quo em arquitectura
Autora de alguns dos projectos mais copiados das últimas décadas, a arquitecta nova-iorquina Elizabeth Diller diz que gosta de repensar as convenções do espaço, mas também tem a ambição de mudar as instituições. O truque, explica nesta entrevista, é combinar coisas que nunca foram experimentadas juntas.
Tem uma disponibilidade desarmante, atendendo a que é o rosto de um dos mais conhecidos ateliers de arquitectura da actualidade. Elizabeth Diller, uma das fundadoras do atelier nova-iorquino Diller Scofidio + Renfro, é a autora de projectos como o High Line, que em Nova Iorque fez de uma linha de comboio abandonada um parque urbano com dois quilómetros e meio de comprimento e poucos metros de largura, ou da nova sala de espectáculos onde o maestro Simon Rattle há-de tocar com a sua London Symphony Orchestra. A arquitecta mostrou em Lisboa, onde em Fevereiro participou numa conferência dedicada ao som e a arquitectura no MAAT, como o High Line é um dos mais influentes projectos de espaço público das últimas décadas, inspirando réplicas que vão desde o Seoullo 7017, em Seul, ao Minhocão, em São Paulo.
Um dos seus últimos projectos, The Shed, envolveu o próprio atelier na descoberta de parceiros para conseguir abrir dentro de um ano um novo destino cultural em Manhattan, um centro que mistura as artes visuais e as artes performativas, situado nos Hudson Yards, uma grande operação de desenvolvimento imobiliário. É a arquitectura-móvel dos Diller Scofidio + Renfro, um espaço que se quer extensível e flexível, que cresce sobre rodas, literalmente, se os eventos assim o pedirem. Uma concha puxada por uma máquina que tem a potência de um Toyota Prius e que vai crescer, não sem alguma polémica, para o espaço público, mas que se alberga, quando recolhe, numa torre de habitação, também desenhada pelo atelier.
O atelier Diller Scofidio + Renfro foi criado em 1981 por Elizabeth e Ricardo Scofidio, numa Nova Iorque muito diferente, onde o casal estava mais interessado em discutir arte e arquitectura do que em construir. Um dos seus primeiros projectos, Parasite, foi mostrado no Musuem of Modern Art (MoMA), interrogando o lugar das instituições artísticas na sociedade. Quarenta anos depois, num atelier a que se juntou Charles Renfro em 1997, este arquitectos anti-sistema estão, ironicamente, à frente da nova ampliação do MoMA.
Provocadores, ouvimos falar deles com mais insistência no início dos anos 2000, quando fizeram o Blur Building, criando uma nuvem, uma atmosfera, para dar forma a um pavilhão efémero na Expo-2002, na Suíça. Depois vieram o Bubble, que insuflava um balão para ampliar o Hirshhorn Museum (projecto que não seria construído), ou o “urbanismo selvagem” que levaram a Moscovo com o atelier de paisagistas Hargreaves Associates, autores do Parque do Tejo e do Trancão (com João Nunes). Em Lisboa, foram convidados recentemente a participar no concurso para o quarteirão da Portugália.
A vossa nova obra em Nova Iorque, o Shed, é sobre o quê? Esta arquitectura móvel é o reflexo do mundo em que vivemos? E precisamos de arquitectura cinética quando tudo está em movimento?
A mobilidade do Shed vem de uma necessidade muito prática. Na verdade, precisávamos de mais espaço do que aquele que estava disponível. Por isso, propusemos estender-nos para outro local perto que estava livre e que não pertencia a este projecto, propondo um espaço multiusos para grande eventos de artes visuais e espectáculos. Imaginámos uma situação em que a cidade pudesse ser convencida de que esse espaço estivesse 50 por cento do tempo desocupado e a outra metade do tempo fosse usado por nós para programação cultural gratuita. Na verdade, é o resultado de um uso parcial do espaço adjacente que a cidade libertou para podermos programar grandes instalações, grandes espectáculos de teatro, qualquer evento que precise de um grande volume. Com esta flexibilidade, e do ponto de vista da sustentabilidade, não precisamos de aquecer ou de arrefecer e programar aquele espaço se não tivermos eventos.
Essa é a racionalidade da coisa, mas uma arquitectura-móvel não é um conceito que casa na perfeição como o nosso tempo? Claro que sempre houve, sobretudo nos EUA, as caravanas e a tradição de casas móveis, mas o Shed parece um pouco provocador.
Muda o paradigma de termos um edifício estático com tudo enfiado lá dentro. É muito flexível e capaz de acomodar várias coisas. Podíamos ter tornado essa mobilidade invisível, mas escolhemos expô-la e torná-la parte da estética do projecto.
Vejo o Shed como uma máquina para fazer arte e ideias, extensível no espaço. De certa maneira, é muito antiquado, com as ferramentas todas a serem mostradas. Basicamente, o edifício é só infra-estrutura.
O Shed pode fazer uma grande quantidade de coisas, mas a maior pergunta é o que é que vai acontecer nas artes no futuro. Isso nós não somos capazes de antecipar. E é por isso que deixamos muita coisa em aberto.
Mas isso é o que acontece normalmente com a arquitectura, nunca sabemos como é que um espaço vai ser usado daqui a um século. Essa é a história dos espaços, eles tornam-se noutra coisa. Isso não é uma desculpa para fazerem aquilo que quiserem?
Não. Nós acreditamos mesmo que a arquitectura não deve impor, não deve ser demasiado autoral, num edifício destinado à arte contemporânea. Claro que a arquitectura é importante e faz a diferença, mas devemos interrogar-nos se uma obra de arquitectura precisa de muita assinatura. Eu, como artista também, que trabalha em áreas que vão da performance às artes visuais, sei que ao estar do outro lado gosto muito de edifícios industriais, espaços a que possamos dar alguns pontapés, que possamos sujar, sem ficarmos intimidados por eles. O projecto tem esse tipo de espírito, é um pouco um edifício industrial feito na contemporaneidade.
O Shed é uma espécie de filho do High Line? Haveria o Shed, com toda esta memória do movimento sobre carris, se não tivessem feito antes o parque?
Acho que é uma coincidência muito inesperada. O High Line mudou a forma como o Far West Side [de Manhattan] se desenvolveu. Criou uma possibilidade de fazer este projecto. Tê-lo-íamos feito noutro lugar? Não sei… Acho que é um produto de pensar em comboios.
A ideia de movimento?
O lugar do High Line era uma linha de comboio. O lugar para o Shed é sobre a linha de comboio de Long Island. Também há muito passado industrial, como os navios que eram ali descarregados para os vagões e vice-versa, e a mobilidade faz muito parte desse lado industrial. O nosso atelier também é aqui. Por isso, há alguma coisa no local que ajudou a ir nessa direcção. Se fosse um sítio urbano, não teria resultado assim. O Shed é livre em três frentes; a outra está ligada a um edifício que também concordámos em construir, a torre, que tem outro cliente. Como estamos a fazer ambos, temos os dez primeiros pisos da torre como bastidores e fomos capazes de cruzar os dois lugares.
Houve alguma polémica em torno do facto de o Shed se preparar para ocupar um espaço público quando se expande? Como é que o justificam?
Trabalhámos isso com a comunidade. Houve muita discussão. O que temos é um acordo em aberto, que garante que [o espaço público] não vai estar coberto todo o tempo. Ainda não sabemos a percentagem, porque ainda não começou a actividade, mas sei que Alex Poots, o director artístico do Shed, quer fazer muitas coisas cá fora. A infra-estrutura também permite trabalhar ao ar livre. O Shed tem muitas possibilidades.
Quando vê hoje o sucesso do High Line, tão imprevisível e avassalador que mesmo o vosso atelier está a pensar sair da zona, percebe por que é que as pessoas aderiram com tanto entusiasmo ao projecto? O que é que era novo?
Há várias coisas, mas a primeira é que se tratou de um presente à cidade. Ninguém o esperava, apareceu depois do 11 de Setembro, quando havia um grande entusiasmo em relação à cidadania.
Outra das razões é porque se vê Nova Iorque de uma maneira completamente diferente. Não temos de parar a todos os cem metros por causa de um semáforo para atravessar uma rua com trânsito. Podemos andar continuamente dois quilómetros e meio sem parar. Dali, as pessoas vêem coisas não oficiais, que não era suposto verem. Chaminés, lados de edifícios, parques de estacionamento, aquilo que não é o postal típico de Nova Iorque. São segredos, às vezes parece que é o subconsciente de Nova Iorque que está lá. É muito atraente, com todas estas descobertas, como uma vista para a Estátua da Liberdade que ninguém sabia que estava lá. Não vemos a grelha normal, mas uma Nova Iorque mais amorfa.
A terceira razão, e aquela que como cidadã nova-iorquina me faz realmente gostar do High Line, é que lá não se pode fazer muita coisa, excepto sentar e andar. Não podemos levar o cão, andar de bicicleta, trazer os patins, jogar frisbee – não se pode fazer nada de recreativo. Isso é novo para os nova-iorquinos, que estão constantemente a ser produtivos, porque se não estão a trabalhar estão a queimar calorias no ginásio ou a fazer compras. O High Line diz-nos que podemos não fazer nada e que isso pode estar certo. É um parêntesis no quotidiano.
Há ainda outro sítio que desenhámos, um pequeno teatro sobre a Décima Avenida, onde podemos ver as luzes dos carros a circularem. Este é o sítio onde não há mesmo nada para fazer. Estamos a olhar para uma coisa que é hipnoticamente chata.
O High Line tem algumas ideias utópicas ou é apenas boa arquitectura?
Eu não penso dessa forma. Vejo-o como uma hiper-realidade, [uma oportunidade para] olhar simplesmente para o que lá está e dar-lhe atenção pela primeira vez. Nós já vimos isto tudo – como quando olhamos para os carros até eles desaparecerem no ponto de fuga –, mas agora perguntamo-nos se é mesmo verdade. É um sítio onde podemos ver o teatro da vida da cidade, uma coisa muito básica: o carro pára e anda; as estações do ano mudam; o semáforo muda de cor. Acho que é um zen urbano.
Hoje, o zen urbano não pode ser uma ideia utópica?
Eu tenho um problema com a utopia, porque depois da utopia há sempre uma distopia. Não consigo pensar numa utopia que não seja distópica. Não há nada de perfeito [na vista que se tem do High Line]: é tudo confuso, sujo, complicado, barulhento, mas conseguimos momentaneamente fugir do quotidiano. [Mas] é um parque muito diferente dos outros. É linear e traz a noção de promenade, a ideia de passeio, uma coisa muito antiquada que ainda se faz na Europa mas que não há em Nova Iorque. O High Line é um sítio para passear, uma nova reinvenção de uma coisa muito antiga.
O High Line foi importante para a valorização do espaço público em Nova Iorque?
Nova Iorque tem muitos parques pequenos, e também tem parques grandes, como o Central Park e o Prospect Park, mas não há nada como isto, nada de tão fundamentalmente urbano.
Mas o espaço público é mais importante agora?
A administração [de Michael] Bloomberg deu grandes passos em relação ao espaço público. Tornou pedonais certas ruas, apoiou este parque e outros, como Hudson River Park ou o Brooklyn Park. Há muitos parques novos e muita atenção ao espaço público. Nova Iorque é muito mais habitável agora do que há 14 anos. Mas inesperada foi também a reacção que o High Line desencadeou internacionalmente. Muitos políticos que visitam Nova Iorque são capazes de repensar as suas infra-estruturas, sejam auto-estradas, linhas de comboio ou pontes. Estamos muito orgulhosos desta ideia de usar uma infra-estrutura obsoleta, poupando energia e dinheiro para produzir espaço público quando esse potencial já lá está.
Esta maneira de fazer espaço público sustentável toca muitas cordas delicadas. Uma delas é levar as cidades a não privatizar o espaço público e a preservá-lo.
Trocando agora de continente, como é que foi trabalhar em Moscovo? É muito diferente da forma como costuma trabalhar em Nova Iorque? Qual foi a ideia principal para o Zaryadye Park?
O arquitecto-chefe de Moscovo, Sergey Kuznetsov, que supervisionou o projecto, protegeu-o. Não foi fácil. Porque nós gostamos de participar do princípio ao fim, de ter o controlo total de todos os detalhes do processo de construção, mas neste caso isso não esteve sempre nas nossas mãos. Quando o rublo caiu, o preço da construção foi bastante cortado. Em relação ao projecto, era um local muito complicado: o Kremlin é perto, a Praça Vermelha é perto, o rio Moscovo está rodeado de igrejas. É um sítio muito carregado. Era também o local do Hotel Rússia, aquele enorme hotel da era soviética.
Qual foi a primeira ideia para o projecto, o passadiço-miradouro que chega ao rio?
Essa foi apenas uma delas. A ideia mais importante foi aquilo a que chamamos um “urbanismo selvagem”. Isso significa que não haveria os caminhos do costume, vistas axiais, a paleta de buxos e rosas, ou relva onde não nos podemos sentar. Muitos dos parques na Rússia são extremamente formais e já não havia um parque novo em Moscovo há 50 anos. É verdade que o Parque Gorki foi renovado antes de o nosso abrir, mas isto é uma coisa nova para a Rússia. No "urbanismo selvagem", as plantas não são as espécies bonitas – flores, sebes esculpidas –, mas plantas que vêm de toda a Rússia, da tundra à estepe, passando pela floresta. Plantas resistentes e muito selvagens. A fronteira entre a cidade e o parque também é fragmentada.
No programa dizia-se para não fazermos espaços onde se pudessem juntar grandes multidões. Mas ninguém nos impediu. Ganhámos o concurso através de um júri internacional que apoiou o projecto. Pode ser muito interessante ver como vai evoluir. É um local muito turístico, mas também está situado em frente à sede do Governo. Acho que isso tem uma ressonância incrível.
Outra dos problemas é que havia esta via de alta velocidade, com muito tráfego, junto ao rio. Nós queríamos permitir às pessoas chegarem tão perto quanto possível do rio Moscovo. Por isso, construímos esta passagem que se liberta da terra, passa por cima suspensa e constrói um miradouro.
Estávamos também muito interessados em enfrentar o clima, porque em Moscovo os invernos são tão frios e os verões tão curtos. Queríamos expandir os dias e as estações, aumentar a luz e o tempo quente. Sobre uma sala de concertos, feita por outro arquitecto, criámos uma grande montanha de relva, estendendo a nossa paisagem para cima da sala de concertos. Sobre isso, colocámos uma concha de vidro, que é ao ar livre. Como o ar quente sobe, este espaço no Inverno, com a neve lá fora, está 20 graus mais quente e a relva consegue manter-se verde. Interessava-nos desenvolver mais coisas como esta, mas algumas foram cortadas com a queda do rublo.
Vocês gostam de trazer novas palavras para o mundo da arquitectura: urbanismo selvagem, desfocado, e agora este edifício que se move. Precisamos de maneiras novas de pensar a arquitectura? Parece que há sempre uma certa vontade de provocar, concorda?
Acho que sim.
Há algumas palavras novas em perspectiva?
As palavras ajudam a provocar uma reacção. Muitas vezes as pessoas não sabem do que se trata. O que é a Mile Long Opera [uma ópera que será produzida por Diller em 2019 no High Line]? “Ópera” e “milha” não são coisas que apareçam juntas. Se não gostamos de ópera, a milha ajuda-nos a chegar lá. De certa maneira, provoca o outro lado a interessar-se.
Vejo o nosso trabalho como uma rejeição do statu quo. Gostamos de repensar as instituições, as convenções do espaço, gostamos de combinar coisas que nunca foram combinadas. Não apenas para sermos provocadores, mas porque a cultura e a sociedade estão a mudar tão rapidamente e a arquitectura é tão lenta quando comparada com a forma como tudo se move hoje em dia. Como é que a arquitectura consegue evitar tornar-se obsoleta? A arquitectura também tem de pensar de uma forma aventureira, de uma forma aberta. Mas para mim trata-se sempre de pensar sobre todos os dias, não de pensar no futuro e em ideias futuristas. Olhar para a perversão de certas coisas, como as instituições, que actualmente continuam a cometer os mesmos erros. Por que não repensar as instituições para conseguir construir um edifício que seja um pouco diferente, por exemplo, para um museu?
Em relação ao Broad Museum, no centro de Los Angeles, disseram que não queriam que fosse uma peça vistosa…
… bem, é mesmo ao lado do Disney Hall [de Frank Gehry ]. É muito difícil de competir com isso [risos]. Nós estávamos limitados por uma caixa-forte e o edifício é demonstrativo das suas funções: é um arquivo [de arte contemporânea], com reservas, e também tem uma galeria.
Acabámos por mudar aquilo que os clientes queriam, as proporções dos espaços dentro do edifício. Os coleccionadores queriam principalmente fazer umas reservas, mas ao mesmo tempo pretendiam urbanizar a Baixa de Los Angeles. Como é que se faz um arquivo-depósito na mais importante artéria de L.A. [a Grand Avenue]? Decidimos que as reservas deviam poder ser observadas. Estão numa caixa-arquivo, cobertas por este véu que traz indirectamente a luz, que produz efeitos e espaços diferentes, para que a relação com as reservas também seja importante para o visitante. Neste projecto, voltámos a estar interessados nos bastidores, nas coisas que não é suposto vermos mas que passamos a ver.