A arquitectura é um acto político
No seu discurso de aceitação, o arquitecto Manuel Aires Mateus defende que o Prémio Pessoa reconhece o trabalho dos arquitectos que diariamente praticam um ofício ameaçado na sua poética pelas sucessivas crises, pelas normas, pelas opiniões. Um ofício que resiste, insistindo na sua liberdade e independência.
Receber este prémio transversal à cultura portuguesa é uma grande honra. Agradeço este generoso gesto do grupo Impresa/Expresso, e da Caixa Geral de Depósitos e considero-o notável pelo respeito que tenho pelo seu júri e pela excelência dos anteriores premiados, representantes de tantos saberes e que muito admiro.
Mas agradeço muito especialmente ao júri a coragem de instituir um prémio que não é de consagração mas que é dado a meio do caminho e que é por isso um acto de fé. Um prémio que sublinha uma caminhada, não no seu termo, mas a meio do seu tempo é sempre um acto de coragem, um acto que assume um risco. É um prémio do incerto, dado à investigação e à inquietação.
Os prémio são por nós amados mas também temidos. E premiar neste caso é dizer "continua a procurar, corre esse risco". Um prémio atribui uma responsabilidade a quem o recebe. Não sabendo se o mereço, procurarei honrá-lo no futuro.
Seguro, no entanto, de que esta atribuição premeia não uma pessoa mas um colectivo e também um saber, uma profissão, com uma relevante expressão do nosso país no mundo. O contexto desta atribuição evoca uma sequência de arquitectos, os nossos arquitectos, mortos ou vivos, que abriram as portas aos que vieram depois, nos seus ateliers ou nas universidades. Arquitectos que diariamente praticam um ofício ameaçado na sua poética pelas sucessivas crises, pelas normas, pelas opiniões. Um ofício que resiste, insistindo na sua liberdade e sendo reconhecido nessa independência. Que assim sigam as novas gerações persistindo no modo poético, artesanal e rigoroso com que a arquitectura se faz no nosso país depende inteiramente do reconhecimento que a sociedade possa fazer disso. Isto é também o que se agradece a este júri.
Este é um prémio atribuído à arquitectura, uma arte tantas vezes difícil de limitar e reconhecer. Uma arte feita de muito perto e de coisas muito banais às quais compete atribuir valor e significado. Porque a arquitetura está próxima de um léxico de ações quotidianas – trabalhar, habitar ou mesmo comer, dormir –, que se repetem desde o princípio dos tempos, é uma arte difícil de reconhecer. O museu avisa que estamos perante uma obra de arte, uma escultura, uma pintura. A cidade não o faz. A arquitectura surge na pressa da nossa rotina, no pano de fundo das nossas acções. Para a vermos é necessário escutar, parar, reparar.
Na exposição da Gulbenkian, Weltliteratur, a primeira imagem continha um texto da empregada de Pessoa. “'Sr. Pessoa, Precisei de sair, está o jantar pronto. É só sentar à mesa, tirar do lume, e comer.' Adelaide". Nas costas deste texto Fernando Pessoa escreve "de repente estou só no mundo. Vejo tudo isto do alto de um telhado espiritual... ver é estar distante." E continua com um texto que irá fazer parte do Livro do Desassossego.
Esta é uma possível metáfora da arquitectura. A arquitectura usa um alfabeto simples: portas, janelas, tecto, chão, que todos conhecemos e que todos somos capazes de organizar. O seu trabalho, no limite, é atribuir-lhe um significado, uma poética.
A arquitectura é uma arte inacabada, completa-se com a “vida”. A casa com o habitar, a igreja com a fé, o museu com outras artes. É uma arte em espera, produzindo espaços abertos a diferentes vivências. Espaços que na sua qualidade promovem a liberdade, abrindo novas possibilidades de uso. Na história, e em particular na Europa, edifícios do passado foram-se transformando, nas melhores escolas, nos melhores quartéis, nos melhores hospitais, nos melhores hotéis. Essa resistência da arquitectura é a sua qualidade. A arquitectura é a arte da permanência, opondo-se à moda, ao efémero, à imagem. É o que resiste à transformação, o que fica para uma nova apropriação.
Nessa resistência cabe à arquitectura abrir fendas, possibilidades do mundo que ainda não se cumpriram. Ver o espaço que não está lá, ver o invisível, o que está por vir. Cabe aos arquitectos ler a realidade. Reconhecer o património do real, eleger, seleccionar, consagrar, propondo uma nova síntese.
Os tempos em que nos movemos são os mais estranhos e contaminam o nosso olhar. São de precariedade num momento, e de euforia no seguinte. A cidade é um organismo frágil e a arquitectura deve ser a guardiã da sua identidade. A cidade é o lugar de todas as contradições e de tudo isto a arquitectura se alimenta. É por isso um exercício permanente de lucidez. Um esforço de procura do fio de Arianne no labirinto da existência, no tumulto do real.
A arquitectura é um acto político no sentido mais lato do termo, no sentido da intervenção no que é comum, no que é público e deve convocar continuamente essa condição. Neste acto deve ser delicada mas corajosa. Procurar a excelência mas não necessariamente o consenso. Todos temos a nossa cidade, a nossa memória e queremos a sua consagração, a sua cristalização. Neste espaço a arquitectura é chamada a hierarquizar, a reorganizar, a eleger e não a nivelar. Num mundo onde a normativa e a banalização da ideia de arquitectura se aproveitam da nossa desatenção, cabe aos arquitectos afirmar a arquitectura contra o nivelamento pela neutralidade.
Esse é o seu risco e a sua demanda.
Neste sentido este é também um prémio dado aos que nos precedem. Aos que antes de nós correram o risco. Aos arquitectos, aos artistas, aos homens com uma sombra longa onde tantas vezes nos abrigamos. Por vezes a nossa arquitectura é desenhada também com estas sombras. É habitada pelos fantasmas, desejados e convocados, de quem somos aprendizes. Um prémio que é de todos aqueles com quem aprendemos. E aprendemos com o rigor de Palladio, a liberdade de Borromini, a materialidade de Zumthor, a poética de Siza ou o saber e o exemplo de Tainha, Souto Moura, Byrne ou Carrilho da Graça. Um trabalho que exercemos apoiado por poetas, escultores, pintores, cineastas, músicos que abrindo o mundo com a sua visão, o revelam, permitindo-nos nele operar.
Agradeço a todos estes e muito especialmente aos músicos, ao Mário Laginha e ao Pedro Burmester, que aceitaram tocar hoje para nós e que com o maestro Pedro Moreira me resgataram à surdez absoluta.
Agradeço acima de tudo e partilho inteiramente este prémio com o atelier. Ao trabalho que é feito desde sempre com o meu irmão Francisco, e que conta com a Maria, o Jorge, a Rita, a Helga, o Kiko, o Francisco, a Inês, etc. (a lista seria enorme) e com todos os que diariamente trazem todos os saberes que nos permitem construir o que imaginámos. É um prémio partilhado com aqueles que nos procuram para que lhes desenhemos as suas casas, todos os que aceitam correr connosco o risco. Partilhamos o prémio agradecendo a todos os que nos permitem trabalhar com esta liberdade, partilhando a incerteza da procura, a inquietação permanente, num trabalho sempre colectivo.
Por fim partilhamos este prémio com a minha família e os meus amigos que são os guardiões da memória dos nossos dias e o lugar da nossa inspiração. Agradeço-lhes o privilégio de poder fazer com eles esta caminhada.
Obrigado. É a palavra que para mim hoje fica.
Discurso proferido a 5 de Março na cerimónia de entrega do Prémio Pessoa 2017 no Grande Auditório da Culturgest