Os Óscares são de A Forma da Água e Frances McDormand — e o seu centro de gravidade é a diversidade
O filme de Guillermo Del Toro, e o próprio, foi o grande vencedor de uma noite que viu mais mulheres a entregar prémios do que a recebê-los. Três Cartazes à Beira da Estrada e Jordan Peele entre os premiados.
Um crescendo sem grandes surpresas salvo a própria ausência de surpresas num ano em que os Óscares tinham sobre si tantas expectativas: de serem pós-Weinstein, pró-diversidade, femininos e multirraciais. Os 90.ºs Óscares navegaram rumo a A Forma da Água e a Frances McDormand, deram a Guillermo del Toro uma das frases da noite — “Sou um imigrante” — e o palco e os prémios aos favoritos e à política. A diversidade foi a bandeira, entre cachorros-quentes e estatuetas para Jordan Peele, Gary Oldman, Allison Janney ou Sam Rockwell.
Os Óscares 2018 foram uma colecção de momentos de gravidade relativa em torno dos centros Time’s Up e da raça, num crescendo para uma recta final onde todos os sinais eram claros. Casey Affleck, que resolveu duas acusações de assédio fora dos tribunais em 2010, não foi entregar o Óscar à Melhor Actriz como deve fazer o receptor do mesmo prémio no ano anterior? Há actrizes para preencher o seu vazio na foto #MeToo da classe 2018 dos Óscares. As principais categorias foram apresentadas por actrizes, da geração de Jane Fonda à de Jennifer Lawrence passando por Helen Mirren e Jodie Foster, abrindo espaço para Warren Beatty que, com Faye Dunaway, puderam corrigir o erro de 2017, o do anúncio errado de Melhor Filme por culpa alheia.
Esse prémio foi para A Forma da Água, depois de os nomeados para o Óscar de Realização terem sido apresentados por Emma Stone como “estes quatro homens e Greta Gerwig”, realizadora de Lady Bird. Foi um deles, Del Toro, que fez história na sua própria carreira, com a primeira vitória à primeira nomeação e com mais um Óscar de Realização (o quinto) para o México. “Sou um imigrante”, emocionou-se, defendendo que a indústria do cinema “apaga as linhas na areia”, fronteiras e muros.
Minutos mais tarde, recebia o Óscar mais cobiçado da noite e falava para “toda a gente que está a sonhar com uma parábola, em usar o género da fantasia para contar as histórias das coisas que são reais no mundo de hoje — vocês conseguem fazê-lo. Esta é uma porta, abram-na ao pontapé e entrem”. Com um filme que levou ainda os Óscares de Direcção de Arte e Banda Sonora Original (Alexandre Desplat) e que esconde na derrota de filmes cheios do eco do momento como Três Cartazes à Beira da Estrada ou Lady Bird (que, como The Post, de Spielberg, saiu dos Óscares sem qualquer prémio) duas pequenas grandes vitórias. É a primeira vez que a ficção científica recebe o prémio máximo e é também o primeiro filme com uma protagonista a receber o Óscar desde Million Dollar Baby em 2005.
Os espectadores receberam cachorros-quentes da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood na já habitual rábula de aproximação das estrelas aos terráqueos que viam os Óscares num cinema vizinho, mas viram mais mulheres a entregar prémios e a anunciar “um dia novo em Hollywood”, como fez Jennifer Lawrence, do que a recebê-los. Para pôr as coisas em "perspectiva", uma palavra que McDormand usou para pousar o seu Óscar novo em folha no chão e pedir a todas as nomeadas para se levantarem, a sala não se ergueu em peso. E dos 33 premiados da noite só seis foram mulheres. Mas a vencedora prevista do Óscar de Melhor Actriz fez do seu momento um pitch colectivo: “Todas temos histórias para contar e projectos que precisam de financiamento”, lembrou.
Para terminar, Frances McDormand tinha Três Cartazes mas só duas palavras: “inclusion rider”. A internet começou a encher a madrugada de explicações. O termo com que a actriz deixou o palco é uma referência ao peso que um actor muito cobiçado, por exemplo, pode ter na inclusão de cláusulas contratuais que garantam a diversidade num dado projecto — tanto nos bastidores quanto frente às câmaras.
Porque, como lembrou a cerimónia ao longo das suas cerca de quatro horas, Hollywood é o negócio dos sonhos e tem “de dar o exemplo”, como pedira o anfitrião Jimmy Kimmel no seu monólogo de abertura. “Se conseguirmos trabalhar juntos para acabar com o assédio sexual no local de trabalho, as mulheres só terão de lidar com o assédio o tempo todo e em todos os lugares aonde vão”, dissera antes, referindo-se logo a Harvey Weinstein. Paradoxalmente, tanto o criador da temporada de prémios, mercantilizada e agressiva como a conhecemos, quanto o principal responsável pelo foco na igualdade de género nos Óscares deste ano depois de dois anos marcados pela questão racial. A referência mais difícil parecia estar feita e o nome do pária podia ser esquecido. Os discursos não foram todos #MeToo, os pins Time’s Up brilharam nalgumas lapelas mas o movimento do momento estava a guardar-se para o seu próprio espaço.
Um segmento apresentado por Ashley Judd, o primeiro nome na primeira investigação sobre o caso, Salma Hayek, e Annabella Sciorra. As três denunciantes resumiram como “um poderoso coro finalmente está a dizer time’s up”, um tempo que acabou e que promete agora, diz Judd, “igualdade, diversidade, inclusão, interseccionalidade” de causas no âmbito da luta feminista. “Quando Telma e Louise saiu diziam ‘isto muda tudo, vamos ver tantos mais filmes com personagens femininas’”, mas isso não aconteceu, lembrou Geena Davis num vídeo que aliava género, raça e outros temas.
Dezassete anos depois, “este é esse momento”. E, como é o negócio dos sonhos que se joga anualmente na cerimónia-espectáculo dos Óscares, sugeria o actor e argumentista Kumail Nanjiani, e dado o sucesso de filmes como Black Panther ou Mulher-Maravilha, “não o façam porque é melhor para a sociedade e para a representação. Façam-no porque ficam ricos, certo? Vão ser promovidos”. Jordan Peele agradeceu pelo prémio de Argumento Original a “toda a gente que viu este filme, que comprou um bilhete e que disse a alguém para comprar um bilhete”. Foi o único Óscar de Foge, a sua comédia de terror sobre o racismo da América liberal que competia também na realização e Melhor Filme.
Os Óscares reconheceram grande parte dos premiados da temporada — Allison Janney por Eu, Tonya e Sam Rockwell por Três Cartazes foram os actores secundários; o Churchill de Oldman de A Hora Mais Negra deu a Inglaterra mais um Óscar de Melhor Actor; o Argumento Adaptado foi para James Ivory por Chama-me Pelo Teu Nome; e o prémio de Documentário foi para Icarus, de Bryan Fogel, mas na verdade foi para o Netflix, seu produtor. Por distinguir ficaram Olhares, Lugares, de Agnès Varda e JR, ou Last Men in Aleppo. Coco tem o Óscar de Filme de Animação e Dunkirk é o discreto segundo mais premiado da noite, com três Óscares "técnicos".
Encetados e pontuados por um anfitrião que aproveitou os 90 anos dos Óscares para tentar um ambiente televisivo “familiar”, os prémios da Academia distinguiram a história transgénero Uma Mulher Fantástica (Chile) como Melhor Filme Estrangeiro e tiveram no palco a primeira apresentadora transgénero, Daniela Vega. Receberam Kobe Bryant, ex-basquetebolista estrela dos LA Lakers acusado de violação em 2003 como premiado pela curta de animação Dear Basketball. No seu discurso, lembrou que há quem ache que "é suposto os basquetebolistas calarem-se e driblarem", uma crítica velada a uma comentadora conservadora de há umas semanas. Bryant ouviu palmas acríticas, mas também um certo rumorejar da sala pela forma como destoaria da fotografia da noite.
Os espectadores viram ainda dez activistas a acompanhar Common e Andra Day na interpretação da canção do filme Marshall, cujas rimas iniciais foram do tiroteio de Parkland à solidariedade com o feminismo, o Haiti, Porto Rico ou com os “sonhadores” imigrantes que a Administração Trump pode expulsar — um espelho do mundo de mensagens que a transmissão televisiva planetária queria abarcar, tão dispersos quanto os prémios que distribuiu. As expressões "mudança sísmica" e "noite de statements políticos" já estão a resumir a cerimónia na imprensa anglosaxónica; fora dela, o triunfalismo não é tão claro.
Tanto máquina de histórias inspiradoras quanto fabricante de auto-promoção, aos Óscares era exigida a diversidade há anos. Nos últimos três, o pedido assumiu carácter de urgência. Tantos hashtags, tanto tempo depois, cabe aos discursos de Frances McDormand e de Jordan Peele preencher as próximas horas de conversa e partilha viral de uma temporada de prémios que, entretanto, já acabou. Mas neste mundo pós-Weinstein ainda há muitos problemas para Hollywood resolver e, como lembrava Lee Daniels no pequeno filme sobre a diversidade, algum do “melhor trabalho vem do tumulto”. “Estamos aqui. Não vamos a lado nenhum.”