Crianças que entraram no Supernanny não assinaram consentimento para que imagens fossem divulgadas

Psicóloga ouvida nesta sexta-feira em tribunal diz que em alguns momentos do programa há evidência de situações que podem configurar maus tratos emocionais.

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A nenhuma das crianças que entraram no Supernanny “foi efectivamente prestada qualquer informação sobre a sua participação no programa” da SIC, diz o Ministério Público. Isto “ao contrário daquilo que consta das cláusulas da ‘Autorização para a utilização do direito à imagem’” dada a assinar pela produtora Warner Bros. TV Portugal aos pais dos menores. Mais: nenhuma das crianças prestou sequer “o seu expresso consentimento” para que as imagens fossem exibidas publicamente — e mais de um milhão de pessoas viram cada episódio, de acordo com processo a que o PÚBLICO teve acesso.

O Ministério Público, em representação de seis crianças e jovens visados nos dois episódios já transmitidos e num terceiro já gravado, intentou uma acção contra a SIC, a produtora e os pais das crianças (sete adultos, no total). A mais nova das crianças tem um ano e meio, a mais velha 14 anos. Nesta sexta-feira decorreu a segunda sessão do julgamento, no Tribunal de Oeiras.

De acordo com o processo, para participarem no programa os representantes legais das crianças assinaram um “Acordo de Participação” com a SIC. Esse acordo estabeleceu a aquisição dos direitos de imagem e propriedade intelectual dos pais das crianças, recebendo estes uma contrapartida de mil euros para que a equipa pudesse fazer gravações em casa, num período que podia ir até dez dias. Como anexo a este acordo existe uma autorização assinada pelos mesmo pais onde estes admitem limitações à reserva da sua vida privada.

No que diz respeito às crianças, a mesma autorização foi dada a assinar igualmente aos pais, enquanto seus representantes legais, diz o Ministério Público. Mas as crianças não chegaram a ser informadas sobre a sua participação no programa e possíveis implicações, ao contrário do que estava previsto no documento “Autorização para a utilização do direito à imagem” da Warner Bros.

Os pais da primeira criança a aparecer no programa (emitido pela primeira vez a 14 de Janeiro) manifestaram-se arrependidos junto da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) de Loures por terem sujeitado a filha àquela exposição pública, lê-se no processo. A criança tem já uma medida de promoção e protecção accionada com o consentimento dos progenitores, que assumiram, entre outros, o compromisso de limitar as suas responsabilidades parentais no que se refere à cedência do direito de imagem da filha.

A CPCJ da área de residência abriu o mesmo tipo de processo à família dos irmãos protagonistas do terceiro episódio (que não chegou a ser exibido), mas esta recusou ser acompanhada, pelo que o caso foi enviado para o Ministério Público. Deste episódio conheceram-se apenas as imagens promocionais — que a SIC depois retirou do site —, tendo o avô das crianças feito queixa à comissão.

Maus tratos emocionais

Arrolada como testemunha pelo Ministério Público, a psicóloga Rute Agulhas considerou nesta sexta-feira, na segunda sessão do julgamento, que em alguns momentos do Supernanny há evidência de situações que podem configurar maus tratos emocionais, nomeadamente nos casos em que são atribuídos nomes depreciativos às crianças envolvidas. “Quando uma criança é chamada de tirana, diabinho, ou seja o que for, estamos a humilhar a criança, que em contexto privado configura crime e pode dar azo a processos de promoção e protecção”, frisou.

Na sua intervenção, a psicóloga disse ainda que as técnicas usadas pela Supernanny durante o programa estão mal aplicadas e dão ideia que é uma fórmula mágica para todas situações. Tendo participado na elaboração do código deontológico dos psicólogos, a também vogal do Conselho Jurisdicional da Ordem destes profissionais considerou que o programa viola igualmente quase todos os artigos deste documento. “Olhando para os princípios gerais, percebe-se porque foi negativo o parecer da Ordem sobre o programa”, afirmou.

Também para o Ministério Público o formato do programa é “altamente atentatório” da privacidade e intimidade dos menores e não pode constituir, como a SIC defende, “um exemplo pedagógico ou um modelo educacional”. O que sustenta com a descrição do primeiro episódio, no qual participa uma criança de sete anos: esta “viu exibida a sua vida privada e íntima, desde as suas rotinas de casa de banho, onde surge vestida de pijama, depois com partes do seu corpo à vista, a fazer birras, deitada na sua cama” e “a ser batida pela mãe”, a chorar. “Não obstante, no final do programa é exibida a advertência, de: ‘Durante as gravações foi respeitada a privacidade dos intervenientes’.”