Já podem dizer à minha mãe que sou chef de cozinha
Se, há 30 anos, um chef de cozinha era alguém de toque na cabeça à frente de uma brigada num hotel de cinco estrelas e um cozinheiro era “um tipo barrigudo, de bigode e ar pouco limpo”, hoje este é um mundo muito diferente
A forma como valorizamos cada profissão altera-se em função do tempo em que vivemos. Jacques Séguéla resumiu isso da melhor forma quando, em 1979, publicou um livro cujo título era: Não Digam à Minha Mãe Que Sou Publicitário, Ela Pensa Que Sou Pianista Num Bordel.
Nas últimas três décadas, a cozinha em Portugal transformou-se profundamente. Hoje abrem novos restaurantes todos os dias, os chefs tornaram-se estrelas mediáticas, o Instagram serve para mostrar o trabalho, é possível estagiar nos melhores restaurantes do mundo, pensa-se sobre a cozinha e as responsabilidades de um cozinheiro. Há muitas ilusões – e algumas desilusões.
Para perceber o que mudou, fomos falar com chefs de três gerações que viveram este período e com um jovem que terminou agora o curso e se prepara para começar a carreira.
Vítor Sobral – 51 anos
Quando Vítor Sobral começou nas cozinhas, há 32 anos, "só havia cozinheiros de carreira nos grandes hotéis, sempre com grandes brigadas", na televisão reinava o chefe Silva e produtos que hoje se tornaram banais não chegavam aos restaurantes de Lisboa.
Figura de referência da cozinha portuguesa, protagonista da mudança que começou a viver-se precisamente há cerca de três décadas, recorda que no lisboeta Alcântara Café, onde trabalhou, "o salmão chegava de dez em dez dias, vindo da Bélgica". E as ervas aromáticas à venda eram "salsa, hortelã e coentros". O estragão, por exemplo, vinha também de fora e o próprio Vítor ia para a serra da Arrábida apanhar tomilho, alecrim, rosmaninho.
Confiante, simpático, comunicador e (o que também era raro), viajado, Sobral começou a dar nas vistas num país em que "a imagem de quem trabalhava na cozinha era a de um tipo barrigudo, de bigode, que não andava muito limpo". Mesmo assim, eram tempos em que "os cozinheiros não tinham o protagonismo e a atenção que têm hoje" (embora tenha sido precisamente com Vítor Sobral, Fausto Airoldi, Joaquim Figueiredo, Luís Baena e Miguel Castro e Silva, que começaram a conquistá-la) e em que a maior parte dos clientes também estava longe de saber o que esperar de um restaurante. "Lembro-me de ter servido um bacalhau fresco com Roquefort e se terem queixado de que estava estragado. Ou de terem mandado para trás o bife tártaro para ser mais bem passado."
Por outro lado, havia críticos – e cita José Quitério, David Lopes Ramos (que foi crítico do PÚBLICO) ou Manuel Gonçalves da Silva – que sabiam do que falavam e cujas opiniões eram muito importantes para os cozinheiros. Agora, diz, valoriza-se muito mais tudo o que é novidade e esquece-se "quem faz trabalho, seja novidade ou não".
Perante este cenário, deixa um conselho aos mais novos: "Hoje, quem consegue trabalhar de forma consistente tem a vida mais facilitada do que no passado, mas quem se deslumbra tem mais probabilidade de se sair mal. Eu, no meu tempo, se me deslumbrasse, ninguém ia ligar nenhuma."
Henrique Sá Pessoa – 41 anos
"Uma das primeiras experiências que tive na cozinha foi tão má que ponderei logo a hipótese de desistir", conta Henrique Sá Pessoa, que hoje tem, entre outros, o restaurante Alma, em Lisboa, com o qual conquistou uma estrela Michelin.
Para um rapaz que começava a pensar na cozinha como uma vocação passar dois meses e meio a lavar tachos não era propriamente um incentivo. "Estava sempre a perguntar ao chef quando é que ia começar a cozinhar. Era um hotel de quatro estrelas, uma equipa grande, com cozinheiros muito mais velhos e lembro-me que ainda se atirava serradura para o chão, para absorver as gorduras, no final do serviço."
Comia-se bem nas refeições do pessoal. "[O peixe] chegava fresco e tinha de se amanhar e escamar, o que nos deixava as mãos desfeitas", recorda. Ele "era o único com o 12.º ano" e os outros interrogavam-se sobre o que estava a fazer numa cozinha alguém que claramente poderia ir para a universidade e ter um futuro melhor. Nas pausas falava-se de mulheres e futebol e para os clientes faziam-se "buffets com muitas gelatinas e salmões inteiros decorados".
Apesar disso, Sá Pessoa não desistiu, foi tirar o curso de Cozinha nos Estados Unidos (no Pennsylvania Institute of Culinary Arts), e, no final, "sabia que não podia regressar a Portugal", onde as possibilidades de trabalhar se limitavam "a dois ou três sítios, muito agarrados a uma cozinha muito clássica". Passou sete anos fora, a trabalhar em restaurantes, regressou em 2002 e aí "o cenário começava a ser diferente".
Figura importante na altura foi o chef francês Aimée Barroyer, que formou uma geração de jovens cozinheiros e, graças aos esforços de Vítor Sobral, Luís Baena ou Fausto Airoldi, "o trabalho iniciado nos anos 90 começava a dar frutos" e surgia um ambiente mais propício para a alta cozinha, assim como novas tendências, entre as quais o sushi, que entretanto se democratizou.
Em 2005, Sá Pessoa foi para o restaurante do Bairro Alto Hotel e começou a criar, às quartas-feiras, menus de degustação harmonizados com vinhos. "Os primeiros dois ou três foram um fiasco, tínhamos de convidar pessoas para não ficar vazio, mas depois começou a surgir um burburinho e passado um mês estávamos cheios, passados dois faziam-se marcações com antecedência e depois passámos a ter dois jantares por mês."
Foi precisamente em 2005 que Sá Pessoa venceu o concurso Chefe Cozinheiro do Ano (que existe desde 1990, ano em que o vencedor foi Fausto Airoldi), que lhe trouxe a atenção da comunicação social (já então a despertar para o fenómeno dos chefs). Mas a grande visibilidade deu-se com o programa de televisão Entre Pratos, em 2006 na RTP2, inaugurando uma nova época de mediatismo da cozinha e dos cozinheiros.
O facto de os chefs terem ficado na moda traz coisas boas e outras menos boas. "Tenho a noção de que há pessoas que ouvem o que eu digo. Não é que me ache importante, mas sei que vão levar a minha opinião a sério." Isso significa responsabilidade – e, muitas vezes, uma pressão para ser trendy. "Há dez anos tudo tinha de ter uma espuma, hoje são os fermentados. Há demasiada necessidade de estar sempre a chamar a atenção e às vezes faz-me confusão que o trabalho dos chefs possa ser tão descartável."
Pedro Pena Bastos – 27 anos
Pedro Pena Bastos tem menos um ano do que o PÚBLICO e, quando começou nas cozinhas, há dez anos, José Avillez estava a estrear-se no Tavares e Vítor Sobral estava a abrir a Tasca da Esquina. "Nessa altura não havia um décimo da informação que há hoje, embora soubéssemos o que era o elBulli e já houvesse a lista [dos 50 Melhores Restaurantes do Mundo, que começou em 2002]. O que me fez agarrar esta profissão foi a paixão pela cozinha, mas na altura sentia que em Portugal não estávamos ao nível do que se passava internacionalmente."
No ano passado, antes do anúncio surpresa da saída de Pena Bastos do restaurante da Herdade do Esporão, no Alentejo, falava-se na possibilidade de, mesmo com 27 anos, o jovem chef poder conquistar uma estrela Michelin. Pedro garante: "Apesar de já ter um percurso anterior, foi no Esporão que dei o grande salto. Mas, quando comecei, não imaginava fazer este percurso tão rapidamente."
Estamos na era do Instagram e é fácil um chef mostrar o seu trabalho ao mundo através das redes sociais. Os seus pares, e os simples curiosos, começam a perceber o seu trabalho e a apreciá-lo mesmo antes de provarem o prato. Mas é preciso ter alguns cuidados. Sem um trabalho consistente por base, não há imagens que cheguem.
Pedro tem absoluta consciência disso. "A minha é uma cozinha de emoções, não justificável pela parte estética. [Hoje] a comunicação social procura-nos e coloca-nos questões e isso obriga-nos a ter um discurso sobre o nosso trabalho." Ao contrário de no passado, agora um cozinheiro "tem necessidade de se expor, de dar a cara pelo seu trabalho".
Mas, sendo bom, conquista-se espaço muito mais rapidamente. Pedro sabe o que quer: "Não estou aqui para ser mais um. Quero fazer parte da evolução da gastronomia do país, a que estamos a assistir. Estamos cá para fazer a diferença, criar projectos inovadores e criativos, refeições que sejam experiências, em que as pessoas aprendam coisas. É isso que me move."
Essa certeza surgiu desde a sua primeira passagem por uma cozinha, que foi "um choque enorme", sobretudo pela "forma como as pessoas não davam dignidade ao seu próprio trabalho". Por isso, e depois de nessa experiência ter aprendido "a ser máquina", decidiu que não precisava de "seguir o que se fazia há 20 ou 30 anos" e que "o esforço, o trabalho e a dedicação", com uma boa dose de autodidactismo, iriam dar resultados.
Um conselho para quem vem a seguir? "Não se deixem levar pelos pratos bonitos, pratiquem muito em casa, acordem com um objectivo, deitem-se com outro para o dia seguinte, foquem-se nas bases e no que é importante. O fundamental é o acto de cozinhar. É uma luta diária, mas não pode ser um esforço. Se forem bons, vão deixar uma marca."
Miguel Feliciano – 20 anos
Um dia, Miguel Feliciano espera vir a ter o seu próprio restaurante. Mas, agora, este jovem, que vive perto de Alfeizerão, acaba de terminar o curso de Culinary Arts na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa e sabe que tem um caminho longo a percorrer. Segue o trabalho de outros chefs pela Internet e "alguns programas de televisão com credibilidade, que são poucos" e dá grande importância ao trabalho de pesquisa, sobretudo em torno da cozinha tradicional portuguesa. "É preciso perceber o que se fazia antigamente e agora não se faz tanto." Porque, acrescenta, "se não forem os cozinheiros a fazer esse trabalho, há coisas que se perdem, e é uma pena".
"Acho que ainda se conhece muito pouco o nosso património. É uma parvoíce termos a cozinha que temos e não a fazermos brilhar", reforça. Mas sabe que, antes disso, tem de adquirir de forma mais profunda as bases – e nos estágios que fez já passou quer por um restaurante de cozinha tradicional, quer por um de base mais francesa.
"Não me sinto preparado, por enquanto, para estar numa cozinha no nível que quero", explica. "Para termos um bom nível, o curso não é suficiente, ainda há muito trabalho pela frente e nesta profissão temos de estar sempre a aprender." Por isso, diz, confiante: "O meu objectivo agora é estagiar em alguns dos melhores restaurantes do mundo." Não é tão difícil como pode parecer, porque "cada vez mais a cultura dos estágios está implementada e é quase um cargo dentro de uma cozinha".
Para já, quer ver mundo e aprender. Não antecipa ainda quando voltará para Portugal, mas sabe uma coisa: "Daqui a cinco ou sete anos quero estar a trabalhar cá." Garante que não tem a ilusão de que é possível tornar-se chef de um dia para o outro. "Sei que não é fácil ter o meu próprio espaço, é preciso muito conhecimento e capacidade de gestão. Mas, sim, o meu sonho é um dia ter algo em que me possa expressar, e, se possível, com um trabalho ligado a uma horta."
E há, entre as suas referências, alguém que admire particularmente? "Há um chef cujo trabalho me cativa muito pelo que fez com a cozinha tradicional portuguesa e até onde a levou." Quem? "Vítor Sobral". n