Xi ganhou um mandato para a vida. O que irá fazer com ele?

Depois de anos a acumular cargos e poder, o líder chinês garantiu que se poderá manter como Presidente o tempo que entender. O objectivo é fazer da China uma grande potência e tornar o mundo um bocado “mais chinês”.

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O livro de Xi, "O governo da China" JASON LEE/Reuters

Xi Jinping já era o secretário-geral do Partido Comunista Chinês (PCC), presidente da Comissão Central Militar, presidente da Comissão Central Nacional de Segurança, comandante supremo do Comando Conjunto de Batalha do Exército de Libertação do Povo. Tinha sido designado como o “núcleo” do partido único e o seu pensamento tinha sido elevado a doutrina oficial. A partir da próxima semana, Xi Jinping passa a ter todo o tempo que desejar para tornar a China grande outra vez.

O Congresso Nacional do Povo prepara-se para aprovar na segunda-feira a decisão tomada pelo PCC e consumar a abolição do limite constitucional de dois mandatos consecutivos para os cargos de Presidente e vice-Presidente do país. A decisão não é surpreendente, mas representa o fim do sistema de “liderança colectiva” que governou a China nas últimas décadas. A perspectiva dominante é que o país mais populoso do planeta passe a ser governado por um homem só, com o grande objectivo de fortalecer a posição internacional chinesa.

A especialista do Council of Foreign Relations, Elizabeth Economy, descreve, numa conversa telefónica com o PÚBLICO, a abolição do limite de mandatos como uma “tomada do poder” por parte de Xi. A expressão parece bizarra quando aplicada a um líder que está há cinco anos no topo de um sistema de governo sem os habituais checks and balances que existem nas democracias. Mas desde o final dos anos 1980 que a China tinha vindo a tentar aplicar uma série de regras para tornar o seu sistema político mais previsível e, sobretudo, impermeável ao aparecimento de homens-fortes. 

Uma delas era o limite de dois mandatos consecutivos para o Presidente, extensível a outros dirigentes do Estado. Foi desta forma que, desde o início dos anos 1990, Jiang Zemin cedeu o seu lugar a Hu Jintao e este a Xi. A China aprendia com os erros cometidos pela União Soviética, onde as transições de poder foram sempre violentas e divisivas. “Havia regularidade e previsibilidade no processo”, escreve o analista da Brookings Institution, Jeffrey Bader. “As diferenças eram trabalhadas nos bastidores entre a liderança do partido. Pelo menos com alguns anos de antecedência, havia um sucessor presumível, que invariavelmente era promovido quando o seu tempo chegasse”, acrescenta.

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Nos últimos anos, Xi vinha já a alterar as regras do jogo. No Congresso do PCC de Outubro, que marcava o final do seu primeiro mandato, não escolheu nenhum potencial sucessor para o Comité Permanente, levando muitos observadores a sublinhar a intenção de permanecer no poder para além de 2023. A aclamação que recebeu no congresso – onde também se aprovou a inscrição do “pensamento de Xi Jinping” na Constituição – permitiu prever a decisão desta semana. “Todos nos acostumámos a ver Xi a acumular cargos e poder nos últimos anos”, diz Economy, que não considera a abolição do limite de mandatos uma surpresa.

Um Presidente para uma potência

Entre os muitos títulos acumulados por Xi, o de Presidente não é sequer dos mais poderosos, quando comparado, por exemplo, com o cargo de secretário-geral do PCC, para o qual não existe limite de mandatos, ou a chefia do Exército de Libertação do Povo, com o controlo sobre os militares.

“O Presidente é responsável por receber dirigentes estrangeiros e representar o Estado a nível internacional, e isso interessa”, afirma Economy, que vai lançar em Maio o livro The Third Revolution: Xi Jinping and the New Chinese State

Os planos de Xi para a China durante o seu consulado, agora sem prazo de validade, envolvem uma crescente ambição na arena internacional. No discurso de abertura do congresso, Xi prometeu tornar a China numa “potência global” e aproximar o país cada vez mais do “palco principal” das relações internacionais.

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E, nesse contexto, a presidência assume uma “nova importância”, explica o ex-editor do jornal de Hong Kong South China Morning Post, Jonathan Fenby. “Xi teria dificuldade em fazer as suas deslocações à volta do mundo em visitas de Estado apenas como líder do partido ou aparecer numa cimeira do G-7 como secretário-geral do PCC”, diz ao site China File.

É conhecido o lema que norteava a postura internacional chinesa desde a época de Deng: “Esconde as capacidades, espera pela oportunidade.” Com Xi, essa oportunidade parece estar muito próxima. A nível externo, as grandes prioridades da liderança chinesa estão relacionadas com a reafirmação da sua soberania em vários planos.

Pequim tem tolerado cada vez menos as demonstrações que desafiem a sua autoridade sobre Hong Kong e, em menor grau, Macau – territórios governados à luz da fórmula “um país, dois sistemas”. Ao mesmo tempo, a assertividade chinesa no Mar do Sul da China, cujas reivindicações territoriais colidem com a de vários outros países da região, deverá aprofundar-se. E resta Taiwan, um assunto eternamente por terminar na óptica de Pequim – que defende a reunificação da ilha com a República Popular – e que Xi se pode sentir tentado a resolver.

Sistema mundial chinês

As ambições de Xi não se resumem à vizinhança imediata. Pequim pretende moldar “um sistema internacional que reflicta melhor os valores e prioridades chinesas”, diz Elizabeth Economy, e, por isso, investe cada vez mais no financiamento das Nações Unidas, contribuindo também para as missões de manutenção de paz em vários pontos do planeta.

Nos últimos anos, a China promoveu também a criação de organismos, como o Banco Asiático de Investimento, que visam concorrer com instituições lideradas pelo Ocidente.

Mas um dos projectos que pode definir o legado de Xi é a chamada Nova Rota da Seda, um conjunto de investimentos em infraestruturas em mais de 60 países asiáticos e africanos com o objectivo de ligar a China à Europa por terra e mar. Uma prova da sua importância foi a inclusão de uma menção a este empreendimento na Constituição, aprovada durante o congresso. “Xi acredita que a China tem algo a ensinar ao resto do mundo, especialmente em termos de estratégias de desenvolvimento, promovendo o modelo chinês”, diz a especialista do CFR.

Há quem veja, porém, um lado positivo numa possível emergência de uma liderança global chinesa. “Se se defende que o mundo necessita de uma liderança, que a América está um caos e a Europa não passa de um prato de areia solta, então talvez a liderança chinesa tenha algumas virtudes, especialmente em áreas como a proliferação nuclear, as alterações climáticas ou as pandemias”, diz ao jornal The Guardian o académico Orville Schell.

Mas o todo-poderoso líder chinês também está a olhar para dentro enquanto consolida a sua posição. Quando chegou ao cargo de secretário-geral, em 2012, Xi encontrou um partido descredibilizado perante a sociedade, que o considerava apenas uma máquina para enriquecer os seus dirigentes. Foi lançada então uma campanha impiedosa contra os abusos de poder cometidos pelos altos funcionários do PCC, atingindo centenas de militantes – embora muitos analistas notem que frequentemente os visados são potenciais opositores internos de Xi.

Elizabeth Economy espera que Xi se concentre, a nível interno, nos “assuntos que prejudicam a legitimidade do partido”, que incluem não só a corrupção, mas a pobreza e a protecção do ambiente. O principal receio é que a onda de repressão contra as vozes dissonantes que se acentuou com Xi se aprofunde ainda mais. A propósito das notícias sobre a abolição de mandatos, as redes sociais chinesas encheram-se de comentários críticos e satíricos, perante os quais os censores não tiveram contemplações, neutralizando até o uso indiscriminado da letra “n” – que muitos utilizadores usavam para dizer quanto tempo Xi deverá ficar no poder.

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