Na Císter já há macarons
Entre o Rato e a Praça das Flores, a Lisboa chique foi-se degradando e despovoando. Ganha agora novo fôlego, mas não só à custa do turismo.
No Talho do Fernando costumava estar o próprio, um homem alto com cabelo curto e encaracolado no cimo de uma testa grande, sempre vestido de bata branca suja de sangue. Gabava-se de ter a melhor carne das redondezas e era difícil contestá-lo, pois era o último talhante do Mercado do Rato. Nas paredes havia duas ou três daquelas fotografias que mostram um grande grupo de homens com espingardas, em pé atrás do produto de uma manhã de caçada. Aos sábados era frequente pôr-se à porta do talho com os sacos já aviados para os clientes do costume, impaciente por seguir dali para a caça.
O Fernando, as fotografias, o porco de loiça, o balcão de vidro e inox, a carne – desapareceu tudo. O antigo talho está hoje forrado de livros e discos do chão até ao tecto. Ao lado, no que foi em tempos o talho de miudezas, há móveis. Em frente, as velhas bancas de peixe enchem-se de livros e utilidades para a casa. Quase tudo se vende na Dona Ajuda, uma loja social que aqui se instalou há dois anos.
O cenário é bem diferente na parte de cima do mercado. A última vendedora de frutas e legumes morreu no ano passado e o espaço ficou vazio. Já tinha fechado a casa de bacalhaus, o talho de frangos, a banca de confecções, a padaria, a florista. A decadência do Mercado do Rato, em Lisboa, não é de agora e foi-se agravando nos últimos anos, desde que a câmara anunciou que aquele velho espaço comercial, inaugurado em 1927, ia ser deitado abaixo para ali se construir um parque de estacionamento com 600 lugares. Os últimos comerciantes começaram então a ir-se embora.
“A minha mãe vinha aqui diariamente. Ali havia umas 30 peixeiras ou mais.” Isabel Portugal, 67 anos, habitante na Rua Alexandre Herculano, tem moderadas saudades do passado. “Noutro dia entrei numa loja de malas que há ali abaixo e disse: ‘Eu moro aqui há 55 anos e esta é a única loja que se mantém. Talho, drogaria, carvoaria, retrosaria, loja de fardas, acabou tudo.’ E a senhora responde-me: ‘Olhe que não é por muito mais tempo.’ Passei lá na semana passada e já tem um cartaz a dizer ‘mudança de ramo’”.
A conversa decorre junto às bancas de mármore, das quais Isabel muitas vezes se aproximou. Faz-lhe pena ver isto assim despido de vida, mas não perde muito tempo com saudosismos. “Eu sinto falta de lojas que vendam coisas do dia-a-dia. Um púcaro, por exemplo. Mas até eu, que tenho quase 70 anos, já faço tudo pela internet. Daqui a uns anos nem sei se há lojas”, diz, com um encolher de ombros. Cristina Pinto, atrás da banca onde trabalhou durante anos, ouve com atenção e, a dada altura, traça a cronologia da morte do mercado. “O que começou a dar cabo disto foi construírem as Amoreiras”, diz. Os restantes golpes foram dados por dois supermercados que abriram nas imediações.
Isabel Portugal, no entanto, situa a decadência do mercado numa dinâmica mais geral, que foi alterando aos poucos, mas profundamente, o modo de vida de um sítio que sempre foi dos mais selectos da cidade. “No meu prédio eu era a única que não tinha empregada interna. Uma vizinha minha tinha uma rapariga que vestia uma farda para o dia e outra para servir o jantar”, relata, como exemplo de algo que o tempo se encarregou de apagar.
Outras coisas nunca mudaram. “A minha mãe veio para aqui pagar três contos de renda em 1962. Dizem que as rendas agora estão caras, mas aqui sempre foi caríssimo. Eu comecei a trabalhar em 1971 e ganhava um conto, veja bem, era metade da renda”, continua. E isso não só não mudou como se agravou, opina Isabel, que antevê que esta zona venha a ficar apenas habitada por estrangeiros. “A cidade não está para jovens.”
A romaria do novo mundo
De vez em quando, o padre Ismael Teixeira põe-se no adro da igreja de São Mamede a olhar para a Rua da Escola Politécnica, que lhe passa em frente. “É um mundo novo que se vê. À noite é quase como se houvesse uma peregrinação.” Quase não precisava de ir à rua para o constatar. “Aos domingos não há uma missa em que não tenha gente que não é portuguesa. Muitos espanhóis, muitos franceses, alguns brasileiros”, conta Ismael, pároco de São Mamede desde o Outono passado, que imediatamente traçou como meta abrir a igreja a esse mundo novo.
Talvez por estar recuada em relação à rua, talvez por ser preciso subir umas escadas para lhe aceder ou talvez por estar quase tapada pela folhagem de árvores respeitáveis, a igreja passa quase despercebida naquela artéria que liga o Largo do Rato ao Jardim do Príncipe Real, espinha dorsal da Lisboa que sempre foi chique e está em mudança acelerada. Por exemplo, ali ao virar da esquina fechou a Pastelaria Alsaciana, um clássico aqui da zona, mesmo que não o fosse para o resto da cidade. Diz um homem enquanto lhe engraxam os sapatos que o espaço foi vendido nem há um mês e que há-de reabrir com novas ideias.
Um pouco mais adiante, defronte do Museu de História Natural, o estabelecimento nos números 85 e 87 também mudou de ramo. Na cantaria está escrito que funcionou aqui a Sapataria Costa, mas nas últimas décadas o sítio foi tabacaria e papelaria, gerida por um sr. Jorge. Agora é um restaurante chamado Naked. “Era uma coisa muito escura, fechada, com muitos espacinhos”, recorda Carla Contige, que com o sócio Miguel Júdice descobriu esta loja vazia ao conversar com amigos. Quem conheceu o antigo espaço comercial dificilmente o recordará, tal foi a transformação que teve. As paredes foram pintadas de verde, uma delas decorada com um bocado do Jardim das Delícias Terrenas, de Bosch, e ficaram à mostra alguns tijolos e a gaiola pombalina.
Carla admite que a ideia não era abrir o restaurante aqui, porque este ainda não é um pedaço de rua com tanta azáfama como lá mais à frente, junto ao Príncipe Real, mas aventuraram-se e não se têm saído mal. “É muito difícil ter um negócio no centro de Lisboa porque as rendas são absurdamente caras. É uma luta diária”, diz a empresária. Quando abriu portas, em Setembro, era frequente o restaurante encher-se para almoço e nada mais. Entretanto foi conseguindo ter a casa bem composta durante grande parte do dia e neste momento até já diz que talvez o espaço não lhe chegue.
É essa romaria constante, a das pessoas que buscam o que há de novo por ali ou que vão divertir-se ao Bairro Alto, que está a passar ao lado da paróquia. “A cidade transformou-se e a igreja tem de estar aberta a isso. Temos de abrir a igreja à cultura, à arte, à música”, defende o padre Ismael, que enumera projectos em catadupa. Quer criar um folheto turístico em várias línguas para ter à entrada do templo. “Ontem tinha aí duas polacas que achavam que estavam na Igreja de Santo António.” Quer recuperar o órgão francês para promover concertos nocturnos. Quer criar um ninho de empresas nas instalações paroquiais. “Há aí muitos espaços mortos, vazios, o que para mim é pecado.” Quer criar um grupo, a que chamou Equipa da Misericórdia, composto por pessoas de diferentes origens profissionais para tentar responder aos problemas concretos dos paroquianos na sua vida diária. Quer criar, talvez com ajuda da câmara, uma residência para idosos despejados das suas casas. “Religioso é ter as pessoas ligadas. Seja pela fé, seja pela cultura, seja pelo que seja, é ligar as pessoas”, resume Ismael Teixeira.
Fartos de peixe cru
O mundo novo de que fala o pároco nota-se também nas pequenas coisas. Na montra da Confeitaria Císter, a mais famosa da rua, agora também há macarons a disputar atenção com as marmeladas e os bolos ingleses. Desce-se a Rua da Imprensa Nacional em direcção a São Bento e, a meio caminho, o barulho de máquinas e o pó a soltar-se pelas janelas invadem as paisagens sonora e visual de um bairro em geral pacato.
A Vila Fernandes está por ali, escondida atrás de uma banal porta de alumínio verde, o número 49 da Rua dos Prazeres. É um sem-fim de pequenas casas térreas, várias delas em obras e muitas arrendadas a turistas. Foram os próprios moradores da vila, alguns a viver aqui há décadas, que começaram essa prática. Agostinho Fontes de Melo comprou uma pequena casa na vila em 2014 e já lá andavam turistas. Aproveitou o barco. “Isto era um nojo: portas a cair, janelas partidas, tudo degradado pela humidade. Investiu-se aqui muito dinheiro”, diz. Mais ou menos na mesma altura, a nora de Agostinho ficou desempregada e o alojamento local foi o que lhe valeu. “Isto aqui está sempre arrendado.”
Colada à casinha da vila fica outra, já com entrada directa pela rua, que também pertence à família de Agostinho e que pode receber até oito pessoas. É frequente, sobretudo no Verão, entrarem e saírem grupos de turistas no mesmo dia. Lá vêm filhos e netos limpar tudo de alto a baixo, mudar camas, reabastecer a casa de banho com uma pasta de dentes ou o frigorífico com um pacote de leite, porque os Fontes de Melo acreditam que o alojamento local tem de ser mais do que só um espaço para dormir. “Está a dar muito trabalho mas tem valido a pena”, comenta o patriarca. Ainda assim, a família tomou uma decisão. O trabalho e as despesas de arrendar a turistas são demasiado grandes e, por isso, a casa maior vai brevemente passar para arrendamento de longa duração. “Agora já compensa mais”, justifica Agostinho Fontes de Melo.
A opção não é estranha para quem calcorreia estas ruas desde o berço. “Toda a gente quer vir morar para aqui”, comenta Maria João, merceeira da Rua Nova da Piedade, a dois passos da Praça das Flores. A casa foi fundada em 1929 e é a última do género na vizinhança. Florentina, 84 anos, que é dona de um restaurante na esquina em frente, desfia todos os negócios que ali conheceu enquanto escolhe morangos. “Houve uma altura em que estava quase tudo fechado. Tudo fechava ou abriam lojas que só aguentavam seis meses”, lembra Maria João. Acrescenta Florentina: “Muitas pessoas que cá estavam compraram andares fora da cidade. Agora é que os filhos e netos voltam para aqui.”
Maria João tem uns 30 e tal anos, conheceu a decadência do sítio. “A Praça das Flores era muito mais fechada, era até um bocadinho perigoso porque havia pessoas que passavam aí droga. Nunca foi uma zona muito violenta, mas tinha algum perigo. Havia aí um grupo de gente que passava droga, punham-se às esquinas à espera dos carros”, relata. Terão sido as últimas obras de requalificação da praça, há dezena e meia de anos, que arejaram o bairro e o tornaram novamente apetecível. “Ficou muito mais aberto, ganhou outra visibilidade”, afirma Maria João.
Na viragem do século, os portugueses endinheirados redescobriram a zona. Entretanto chegaram novos negócios, sobretudo cafés e restaurantes internacionais, e foi o olhar dos estrangeiros que aqui recaiu. “Eu ainda hoje vendo os comeres à antiga portuguesa. É o que se vende mais. As pessoas estão fartas de peixe cru”, atira Florentina. A veterana moradora reconhece a pujança populacional trazida pela recente reabilitação dos edifícios, mas quem já viveu muito tem a memória para travar euforias. A grande debandada de gente há uns anos deu-se porque “a vida começou a ser muito cara, esta zona ficou insuportável”, diz. “Este bairro vai voltar ao mesmo”, vaticina.
Saco azul do bem
Se o antigo Talho do Fernando está cheio de livros e discos é também para combater a “insuportabilidade” do centro de Lisboa. A Dona Ajuda nasceu com o propósito de vender coisas boas a preços baixos, para que todos consigam comprar e para que as receitas sejam usadas em projectos bons para a comunidade. “No fundo funcionamos como um saco azul para o bem”, explica com uma risada Cristina Velozo, uma das líderes da Associação Boa Vizinhança de Santo António, que criou esta loja social. O nome engana, porque apesar de estar na freguesia de Santo António, a associação já interveio fora. “Noutro dia estiveram cá pessoas do abrigo da Santa Casa que desconheciam isto e entretanto já reencaminharam várias pessoas para cá”, conta Cristina.
Tudo isto arrancou há uns anos quando alguns vizinhos com vontade de “ter alguma intervenção social” se juntaram. A loja é apenas uma das facetas da associação, que também promove festas e actividades culturais com o objectivo de unir as pessoas. “No meio de Lisboa, as pessoas terem a preocupação de manterem laços com a vizinhança é muito bom”, comenta Paula Berberan, supervisora da Dona Ajuda.
A loja começou quando os vizinhos pediram “dois armazénzinhos” do abandonado Mercado do Rato à câmara e entretanto cresceu até ocupar um pavilhão inteiro. E há vontade para crescer mais, para se tornar a âncora do pólo de empreendedorismo social em que Cristina Velozo gostava de transformar o velho mercado. Mas isto choca com a intenção de construir o tal parque de estacionamento, em nome do qual os antigos comerciantes se foram embora. Por que caminho se traçará o futuro deste sítio? “Não nos doa a cabeça até lá”, comenta Cristina.