De mãe coragem a chef Fátima
Aos 49 anos, a síria deixou de cozinhar apenas para a família e tornou-se chef no restaurante Mezze, no Mercado de Arroios, em Lisboa. A 3 de Março, no Festival P, conduz um showcooking de gastronomia do Médio Oriente e vai mostrar como se faz pão árabe, babaganoush e baklavas.
Quando era pequena, na cozinha da casa dos pais, na Síria, Fátima gostava de ver a mãe a rechear folhas de videira com arroz, enrolando-as delicadamente para não as partir. “Enrolar a folha é uma coisa muito especial, se não ficar bem feito o arroz vai cair”, explica o filho Rafat, que traduz a conversa com a Fugas porque o português de Fátima ainda não é suficiente.
Há muitas especialidades sírias, como este yalanji, ou o kibbeh, pastéis de bulgur recheados com carne, que são trabalhosas, mas esse trabalho é parte do prazer quando se cozinha com amor. E eram precisamente as coisas mais difíceis que fascinavam Fátima, ansiosa por as conseguir fazer tão bem como a mãe.
Hoje, aos 49 anos e depois de a vida ter dado mais voltas do que ela alguma vez imaginara, está prestes a deixar de cozinhar apenas para a família e a tornar-se chef num restaurante – o Mezze, que vai abrir no Mercado de Arroios, em Lisboa. Como é que Fátima chegou aqui?
Há cerca de dois anos que vive em Lisboa com quatro dos seus cinco filhos, os dois genros e quatro netos. E vários deles vão trabalhar ao seu lado no Mezze: Rafat, o filho de 21 anos, que ficará na sala, e as duas filhas, Rana, de 28 anos, e Reem, de 27, na cozinha (o filho mais novo, Yahya está ainda a estudar).
Para trás ficaram os primeiros tempos da brutal guerra na Síria: a saída da casa onde viviam porque deixara de ser segura, a morte do marido de Fátima quando tentou regressar para recuperar alguns pertences, a fuga da família para o Egipto, as dificuldades por que passaram neste país, tentando sobreviver numa situação muito difícil.
Até que surgiu a possibilidade de virem como refugiados para Portugal e Fátima achou que era a melhor solução para voltarem a ter alguma segurança. Apenas uma coisa a deixa ainda inconsolável: um dos seus filhos, Rateb, ficou na Turquia com a mulher e um filho e não consegue o estatuto de refugiado para poder reunir-se com a família em Portugal. Fátima fala deste filho, que não vê há cinco anos, em todas as entrevistas que dá, na esperança de que alguma porta se abra para que todos possam finalmente ficar juntos.
Chegados a Portugal, começaram a pensar o que poderiam fazer para trabalhar. “Pensámos abrir uma casa de costura”, explica Rafat. “O meu cunhado é costureiro, eu também trabalhei como costureiro no Egipto e a minha mãe tem um bocadinho de experiência porque tínhamos uma máquina em casa e ela fazia coisas para nós.”
A outra ideia que tiveram foi a de abrir um restaurante, mas rapidamente perceberam que, sozinhos e ainda lutando com dificuldades com a língua portuguesa, seria muito difícil. Em Damasco, o marido de Fátima tinha um restaurante de take-away especializado em kebabs e frangos assados, mas “era muito diferente” do que o que queriam fazer aqui.
Foi então que um professor de português de Rafat lhe chamou a atenção para um anúncio que surgira no Facebook: a Associação Pão a Pão, criada por três portugueses e uma síria (Francisca Gorjão Henriques, Rita Melo, Nuno Mesquita e Alaa Hairi) para ajudar à integração dos refugiados do Médio Oriente em Portugal, estava à procura de quem soubesse fazer boa comida síria para uma série de jantares que iam acontecer em Dezembro de 2016 no Mercado de Santa Clara, em Lisboa – o embrião do Mezze, que nasceu depois graças a muitas ajudas e a uma bem-sucedida campanha de crowdfunding.
A família mostrou-se disponível e logo todos se encantaram com os cozinhados de Fátima. Os jantares foram um sucesso e o projecto foi avançando. Todos os sírios envolvidos passaram por aulas na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa, das quais Fátima recorda o muito que aprendeu de técnicas de cozinha – cortar os legumes muito rápido e sem levantar a faca, por exemplo – e a surpresa que teve quando se apercebeu da quantidade de regras de segurança e higiene alimentar que existem.
Aprendida a teoria, foi tempo de Fátima, Rana, Reem e Rafat verem o que é, na realidade, o dia-a-dia de um restaurante. José Avillez, que tinha provado a comida deles durante um jantar que serviu para testar o futuro menu do Mezze, abriu-lhes as portas do Bairro do Avillez para um estágio. Aí, entre muitas outras coisas, perceberam que “se for uma pessoa sozinha a fazer um prato demora muito tempo, mas eles fazem cada um uma coisa e fica pronto em dois minutos”, resume Rafat.
Agora, o Mezze está quase a abrir portas e Fátima pronta para assumir o seu papel de chef. Querem, com o restaurante, mostrar, para além da comida síria, a vossa cultura aos portugueses?, perguntamos. A resposta surge rápida, com Rafat a completar o que diz a mãe: “O que queremos mesmo é integrarmo-nos na vossa cultura, aprender mais coisas, falar melhor a vossa língua. Na Escola de Hotelaria já conhecemos mais portugueses e no restaurante do José Avillez também. E claro que os portugueses também já sabem coisas sobre nós, que as mulheres usam o lenço, que não cumprimentam os homens com beijinhos.”
De uma coisa têm a certeza: “As pessoas vão gostar da nossa comida, porque já gostaram muito nos jantares no Mercado de Santa Clara”, diz Fátima. Lembra-se bem dessas noites de casa cheia e de como se comoveu quando no final os aplaudiram. “Nesses dias trabalhávamos muitas horas mas não me sentia cansada porque estava muito contente. E ficámos ainda com mais vontade de seguir com este projecto e de mostrar mais da comida síria.”
Texto originalmente publicado no suplemento Fugas de 26 de Agosto de 2017