É mais forte do que ele
É clara a vantagem competitiva que a empresa extrai de poder dispor de um ex-presidente da Comissão que pode pegar num telefone e marcar uma reunião com um vice-presidente da Comissão atual.
Hoje, quarta-feira, é dia de reunião do “colégio de comissários” da Comissão Europeia. Num mundo ideal, deveria estar na ordem de trabalhos o facto de o ex-presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso, ter solicitado e obtido uma reunião com o vice-presidente da Comissão em possível violação do seu compromisso de não fazer lobbying em nome dos seus novos patrões da Goldman Sachs junto das instituições da União Europeia.
Como o PÚBLICO noticiou ontem, a Comissão admite que nessa reunião privada entre Durão e o vice-presidente da Comissão, Jyrki Katainen, foram discutidos temas da “indústria financeira e defesa” que evidentemente são de enorme interesse para a Goldman Sachs. A empresa nega que tenha havido lobbying — o que só se compreende numa definição extremamente restrita do significado do termo. Durão Barroso pode não ter tentado influenciar o seu ex-colega para beneficiar diretamente a Goldman Sachs e respetivos clientes. Mas é clara a vantagem competitiva que a empresa extrai de poder dispor de um ex-presidente da Comissão que pode pegar num telefone e marcar uma reunião com um vice-presidente da Comissão atual. É claro que poder intuir com mais antecipação e certeza para onde vão as decisões da Comissão Europeia na regulação financeira ou nos investimentos da defesa pode resultar em informação muitíssimo valiosa. E é claro, finalmente, o desconforto que a notícia gera: a Comissão tinha extraído de Durão Barroso algumas garantias para mitigar o golpe público que foi ter um seu ex-presidente a trabalhar para a Goldman Sachs. Agora, até essas promessas Durão violou.
Claro, imagina-se que a Comissão vai tentar não pegar neste assunto — nem na sua reunião de hoje nem, se puder, nunca. Mas isso pode não ser assim tão fácil. É que podemos não estar num mundo ideal, mas há apesar de tudo um pequeno nada que faz a diferença: as instituições europeias têm regras para o lobbying, e há gente suficiente a dar-lhes importância para se mexerem por causa delas. Os lobistas têm de estar registados e se violarem as normas de conduta podem perder o acesso às instituições. Há uns meses, o Parlamento Europeu decidiu banir todos os lobistas do gigante industrial Monsanto por esta companhia se ter recusado a comparecer a uma audição parlamentar. Já há uns anos, o próprio Durão Barroso teve de demitir um seu comissário por ter tido um encontro não-registado com uma grande tabaqueira. As normas internacionais recomendam, por exemplo, que nenhuma reunião entre um político detentor de um cargo e uma tabaqueira possa decorrer sem registo, testemunhas e gravação - a tendência atual é para implementar essas normas diretamente nas instituições comunitárias. E em todas essas instituições há grupos de funcionários que não querem ser confundidos com os maus exemplos fazem pressão para que os controles sejam cada vez mais apertados: há uns meses, quando Durão aceitou trabalhar na Goldman Sachs, uma carta à Comissão Europeia apoiada por centenas de trabalhadores das instituições comunitárias sugeriu que fossem retirados a Durão os seus privilégios de ex-presidente.
Tudo isto será insuficiente. Mas há uma marcada diferença em relação ao que se passa em Portugal, onde só agora se começam a debater no Parlamento propostas para a regulação do lobbying no nosso país. Em Portugal, não só o acesso dos interesses privados aos legisladores e governantes é desregrado e opaco, como às vezes os representantes dos interesses privados coincidem nas mesmas pessoas com os legisladores - como no caso dos deputados que em pleno mandato continuam a trabalhar como advogados de empresas que têm negócios com o estado (parece que isto vai finalmente, e felizmente, mudar).
Em Portugal, o que aconteceu aos lobistas da Monsanto banidos por se recusarem a ir a audições parlamentares nunca sucederia. Para voltar onde começámos, há já anos que Durão Barroso declinou comparecer na Assembleia da República para prestar declarações sobre a Guerra do Iraque — e nada lhe aconteceu.
Como interesse público, o que devemos querer é que haja consequências para a confusão entre o interesse público e o interesse privado. Nesse domínio, a Europa tem bastante caminho por fazer e Portugal tem caminho por começar. Quanto ao resto, podemos perguntar-nos por que insiste Durão Barroso em pisar a linha da impropriedade para um ex-chefe de executivo nacional e europeu. Cada um de nós terá a sua resposta. O mínimo que podemos dizer é que foi mais forte do que ele. Com Durão Barroso, é sempre mais forte do que ele.