Para Romeo Castellucci a linguagem é um campo de batalha
Romeo Castellucci, um dos criadores mais reputados do teatro europeu, traz ao Teatro São Luiz Democracy in America. A partir do livro de Tocqueville, o italiano reflecte sobre o peso religioso na fundação dos Estados Unidos e eleva a linguagem a personagem principal.
Começa com marchas, trajes com a pompa de outros tempos, como se assistíssemos a uma parada do 4 de Julho, em glória e mistificação dos Pais Fundadores e da invenção dos Estados Unidos da América como a maior nação do mundo. Uma parada-espelho do orgulho imenso na sua História, celebrada com a espectacularidade de um país que soube transformar tudo em entretenimento e é hoje liderado por um produto claro dessa cultura. As letras que compõem o título Democracy in America, mais recente espectáculo do exímio provocador encenador italiano Romeo Castellucci – em cena no Teatro São Luiz, Lisboa, entre 23 e 25 de Fevereiro –, servem para nos anunciar a peça e logo a seguir reorganizam-se nas mãos do elenco feminino para formar a palavra “marching bands”. Sim, é a isso que estamos a assistir. Mas os anagramas continuam até nos mostrar outras combinações possíveis como “cocain army medicare”, “camera demoniac cry” ou “decay crime macaroni” (nem sempre, note-se, as letras são suficientes para ultrapassar as imprecisões ortográficas).
Pouco importa. O que importa são os conceitos avulsos que são despejados sobre o público, neste ritmo de parada na 5ª Avenida, que apenas termina depois de vermos ainda surgir os nomes de países como Canadá, Macedónia, Roménia, Arménia, Myanmar, Iémen, Irão, Omã ou Índia. Parecem nomes escolhidos ao rodar o globo e colocar um dedo, casualmente, em qualquer região do planeta. “É também essa a natureza da América”, diz Romeo Castellucci em conversa com o Ípsilon. “Uma nação feita por muitos outros povos, feita pelos ‘outros’. É uma colecção de diferentes culturas, de diferentes tradições.” Ou, como dizia o filósofo Gilles Deleuze, que o italiano cita em seguida, os Estados Unidos são como um “muro a seco”, um muro sem cimento, pedra colocada sobre pedra, mas sem algo que o solidifique e o transforme de amontoado de peças em peça única.
Daí que Castellucci se diga “chocado pelo facto de, no início, a América ter sido capaz de conter tantos povos diferentes e ter também inscrita em si essa natureza”. O choque, claro, não tem propriamente que ver com essa pátria de muitas mães e outros tantos pais, mas antes com o repúdio que hoje é cuspido no sentido do restante mundo, como se aquele fosse, afinal, um país auto-gerado, nascido de gestação espontânea e inventado do nada. Mas o italiano rejeita qualquer intenção de “análise política” que se possa ver no espectáculo enquanto comentário directo sobre a actualidade. Esta é uma criação interessada sobretudo pelo “coração das trevas da democracia americana” na sua fundação, e não por “hoje a América ser problemática ou pela eleição de Trump”. “O Trump e a situação contemporânea não me interessam”, sentencia. “As últimas eleições são uma coincidência – uma má coincidência.”
No limite, Democracy in America conterá uma crítica ao caminho que se iniciou na época retratada em cena (segunda metade do século XVIII), a do nascimento da democracia no território, e que desaguou neste presente. Porque, antes de mais, aquilo que estimulou Romeo Castellucci foi o livro homónimo de Alexis de Tocqueville, em que o historiador francês escalpeliza a mitificação desse parto da democracia americana que se quer fazer crer que terá sido absolutamente higiénico, sem sangue nem dores – como qualquer parto no cinema de Hollywood, em que os bebés nascem já banhados, imaculados, sem placentas à vista.
“O primeiro gancho que me agarrou”, reconhece Castellucci, “foi a beleza do título. Mas claro que o pensamento político também foi interessante para mim. Acontece que me fascinei por este título há muitos anos porque há um tipo de mitologia acerca da democracia na América explorada no livro, que se debruça sobre a forma como os novos americanos construíram um novo modelo de sociedade. E aquilo que mais me impressionou na leitura foi descobrir como a democracia americana está fundada, muito em particular, no Velho Testamento. Não falo do Evangelho, mas do poder muito primitivo emanado do Velho Testamento. Daí a relação com o deserto, a grande caminhada das pessoas, o exército, a relevância das armas, a força, o sangue e o destino.”
Ao munir-se do texto de Tocqueville, Castellucci toma uma particular atenção à contradição da promessa de “uma nova luz e uma nova perspectiva sobre a liberdade” em conflito com o tratamento destinado, por exemplo, aos negros e aos índios. “No meu espectáculo”, defende, “gostaria de mostrar esta contradição, assim como a beleza da história humana e sangrenta da América.” É pela alusão a negros e índios que Castellucci segue assim que se retira de cena a marching band e é mostrado um bebé como símbolo óbvio do nascimento de uma nação. Depois disso, ouvimos um canto de trabalho em modo blues, embalado pelo verso inicial “I’ve been working all day long” e que, mais à frente, falando daquele que, à sombra e com uma arma à espreita controla os trabalhadores, descreve a relação de forças como “he don’t do nothing but he gets paid”.
Primeiro, escravatura; depois, com dois nativos americanos em cena, um passo mais na submissão e opressão de todos quantos não faziam parte deste grupo de povos ocidentais que viram naquele apelidado Novo Mundo um espaço à espera de ser ocupado com gentes, leis e dominações prontas a estrear. Em palco, os dois índios tentam aprender inglês. “Foi através da linguagem que os ocidentais derrotaram os nativos”, acusa Castellucci. “Fazendo truques com a língua para confundir os nativos. Mas em todo o espectáculo a linguagem é um campo de batalha. Antes de mais, porque os nativos se vêem obrigados a aprender inglês para se poderem proteger dos ingleses. E esse é um paradoxo absolutamente triste – a necessidade de acolher o inimigo para tentarem salvar-se.”
“As palavras deles não dizem as nossas coisas”, lamenta-se um dos indígenas. “Não quero falar como eles.” E prosseguem com a certeza de que o interesse dos outros – para quem o silêncio não passa de uma palavra, para quem não é possível caçar aves nem bisontes com palavras –, é apenas estabelecer uma comunicação que obrigue os índios a dizer “sim”. A linguagem é em Democracy in America, como fora dela, uma ferramenta de poder, de controlo e de opressão. E é, admite, Castellucci, a personagem principal do seu espectáculo. “Pertencemos à linguagem, não é ferramenta neutra”, reforça. “E não é uma dádiva de Deus. É talvez uma dádiva do Diabo”, ri-se.
América vs. Europa
Dos índios, saltamos para os puritanos, em busca do paradigma na base da fundação da democracia americana, de acordo com Tocqueville. “Algo terrível”, alega Castellucci, “porque eles vivem literalmente o Antigo Testamento: não há misericórdia, apenas a lei e o poder.” A linguagem, como personagem principal, emerge novamente sob a forma, por exemplo, de glossolalia, termo que designa a fala de uma língua estrangeira sem explicação para tal que não seja o transe religioso. Essa fala apodera-se depois da mulher puritana que, em palco, discute com o marido a justiça de Deus. Às tantas, é ela quem, como uma possuída, desata a falar um dialecto índio, “porque quer regressar às raízes, quer regressar à mãe Terra e porque sente, provavelmente, o coração das trevas e se recusa a fazer parte desta nova sociedade, uma vez que não acredita no sonho americano – esse sonho não existe”.
Abordar a democracia americana passa, por arrasto e inevitável comparação, por falar também da democracia europeia. Com a diferença de fundo estabelecida desde logo numa génese religiosa ou cultural. O primeiro acto da democracia grega provém de As Euménides, o capítulo final da Oresteia, de Ésquilo, quando se instala um tribunal para decidir sobre a eventual condenação de Orestes pelo assassínio da sua mãe (Clitemnestra) e do seu amante (Egisto), que por sua vez tinham matado Agamémnon (pai de Orestes) em vingança por este ter sacrificado a filha aos deuses. A democracia grega, e a europeia, retiram o divino da equação “no dia em que os cidadãos de Atenas abandonam os deuses e se julgam a si próprios, segundo a lei e os direitos humanos”, comenta Castellucci. “A democracia europeia chega com o teatro grego, nasceu pouco a pouco, tragédia após tragédia, com a contribuição de Eurípides (o dramaturgo mais democrático), porque era uma espécie de laboratório em que se fazia uma experiência artificial.” Além de que a tragédia grega assume o sentido de culpa.
“Na América é o oposto completo – a nova democracia americana precisa dessa forte ligação com o Velho Testamento.” Castellucci compara a conquista e ocupação do Oeste ao Êxodo narrado por Moisés, “personagem inspiradora para a liberdade dos negros que, no entanto, foi continuamente uma ilusão”. A raiz do Velho Testamento compara-a ainda à chegada àquele território como manifestação de “uma vontade de Deus” e a construção social faz-se então com base num pressuposto de que “todos são iguais, todos devem ter a possibilidade de enriquecer, porque quando se é rico é-se abençoado por Deus”. Isso significa que tem de se trabalhar incansavelmente para lutar e “ganhar o prémio”. Ou seja, logo à nascença, é uma cultura da riqueza como fim último, da sujeição a uma falsa ideia de igualdade de oportunidades e mobilidade social – basta ver os números da Ivy League para perceber como os privilégios se perpetuam dentro das mesmas famílias.
Tocqueville fala também de um novo poder de comunicação nos Estados Unidos. “Para ele, um político estava, de certa maneira, obrigado a ter um jornal – para moldar a opinião pública, para influenciar as opiniões. E é por isso que ele fala da tirania da maioria, porque ter uma maioria não é garantia de justiça. Pode até ser pior, porque significa que alguém foi muito capaz de compreender como funciona a influência sobre o povo e isso é algo que, hoje, podemos compreender sob uma nova luz.” Castellucci reconhece inequívoca razão ao francês nesse ponto, ao mesmo que identifica uma falha na crença de que não era possível àquele país produzir escritores, pintores ou músicos devido à ignorância e à preocupação exclusiva com aspectos económicos que via nas pessoas.
Enganou-se o autor e o encenador desconfia que sabe porquê. Não previu que a arte norte-americana surgisse como “anticorpo, antídoto contra a atitude puritana”. O que não previu também foi que dois europeus pudessem estar, em 2018, a recorrer ao inglês para se entenderem numa entrevista telefónica. “A comunicação é hoje o grande campo de batalha”, diagnostica Castellucci. “É a comunicação que hoje molda a nossa consciência, o nosso pensamento e até os nossos corpos. A invasão não foi apenas contra os índios, mas contra todos nós, os novos índios.”