Alvalade quer modernizar uma das primeiras obras de Ribeiro Telles
Junta apresentou duas propostas de requalificação da zona verde do bairro que foi projectada pelo arquitecto Ribeiro Telles. Apesar de considerarem que as propostas respeitam o traçado original, a construção de um anfiteatro e de mais um espaço de estacionamento não convence os moradores.
Chegou-lhes pelo correio uma carta da junta de freguesia a convocá-los para um debate onde seria apresentada e posta à discussão uma proposta de requalificação do espaço público do Bairro das Estacas. A novidade causou burburinho e receio de intervenções profundas que descaracterizassem aquela que é uma zona que tem a arte do arquitecto paisagista Gonçalo Ribeiro Telles.
No Auditório Aquilino Ribeiro Machado, na Rua Teixeira de Pascoais, mais de 40 pessoas, entre moradores e arquitectos - com a Ordem dos Arquitectos a marcar presença -, foram pedir explicações à junta, sobre a reabilitação daquele espaço que está integrado naquele bairro de Alvalade, projectado há mais de 60 anos, sendo ainda um dos exemplos - "como não há muitos", dizem os entendidos - do Modernismo em Lisboa.
Com a passagem do tempo, o bairro começou a ser “desfigurado”, notam os moradores. As varandas começaram a ser transformadas em marquises, o pavimento dos arruamentos deteriorou-se, alguns logradouros, na base dos prédios, foram sendo transformados em parques de estacionamento e em lixeiras.
A sessão, que durou perto de três horas, acabaria por começar com José Pedro Ferreira, vogal com a divisão do espaço público e equipamentos, a concluir o que havia de ser repetido pelos moradores: há problemas de mobilidade pedonal no bairro, há dificuldades na acessibilidade aos prédios, existe uma degradação dos pavimentos e do mobiliário em geral.
“É verdade que temos pavimentos degradados, a continuidade física e visual está afectada porque houve intervenções feitas pelos condomínios. A vegetação também foi alterada, há dificuldades na circulação e reportes de falta de segurança”, elencou o presidente da junta de Alvalade. Daí a necessidade de requalificar aquela área, de retirar "algum abastardamento que houve relativamente ao projecto original de desenho deste espaço. É a preservação e a recuperação da identidade do traçado, do conceito, dos materiais, mas aqui e ali trazer alguns elementos de modernidade”, garantiu André Caldas.
Em cima da mesa estão duas propostas que foram colocadas a discussão. No geral, o que se pretende é fazer novas plantações, “mas preservando as espécies arbustivas já existentes”, “criar um espaço multifuncional com zonas de estadia, zonas de lazer, recreio”, assim como “uniformizar pavimentos e promover a mobilidade pedonal com soluções mais modernas”. O que passará, por exemplo, por “requalificar os pavimentos das lajes de calcário que são muito marcantes no espaço”, notou José Pedro Ferreira.
Os planos da junta prevêem a construção de um anfiteatro para espectáculos públicos, junto à Rua Bulhão Pato, que foi, de resto, a intervenção mais criticada pelos moradores. “Há sempre pessoas a conversar à noite. É um calvário para quem tem os quartos projectados para essa zona. Para que é que nós precisamos de mais festas e ruídos na zona onde moramos?", questionou Nídia Antunes, que ali mora há 22 anos. Por ser um espaço onde já existe uma diferença de quota, notou outro morador, Álvaro Carvalho, não é necessário estar a criar um "anfiteatro artificial". "Todo o espaço foi desenhado para fins de jardim e deve ser preservado como tal o mais possível”, reforçou.
Na zona do parque infantil, estão previstas intervenções que terão como objectivo criar uma zona de estadia, com um pavimento em madeira e “bastantes bancos para que as famílias possam estar perto” das crianças, explicou José Ferreira. Prevista está também a reabilitação dos jogos de macacas originais, para "manter a memória" do espaço.
A falta de estacionamento é, de resto, uma preocupação comum à maioria dos moradores presentes. Que acreditam, contudo, que o novo espaço previsto numa das propostas, com capacidade para 11 carros, “não vai resolver o problema”. Vão manter-se as duas zonas de estacionamento, tendo uma moradora sugerido que aqueles 22 lugares fossem reservados aos residentes, o que não acontece actualmente.
Quanto aos acabamentos, o caminho principal será feito com betão, que é hoje em calçada, para “fazer um caminho pedonal confortável e que atravessa todo o bairro”, explicou José Ferreira. Essa substituição, notou André Caldas, “visa garantir que pelo menos um dos trajectos tem um pavimento que é acessível a todos os cidadãos independentemente da sua mobilidade”.
Os caminhos secundários serão alterados de betuminosos para calçada de cubo miúdo, “um material mais adequado ao acabamento geral do bairro”. Já nos caminhos terciários, serão utilizadas as lajes de calcário que lá estão actualmente.
Quanto ao arvoredo, as intervenções serão feitas tendo em conta as recomendações de um estudo que a autarquia encomendou ao Instituto Superior de Agronomia.
A segunda solução é em tudo idêntica à primeira, sendo que o projecto abdica da construção de um novo espaço de estacionamento. Para esse local está antes prevista a criação de uma zona de estadia e a reinstalação dos dois jogos da macaca.
“Não há uma alteração de fundo. Há uma actualização de materiais e a manutenção e a reabilitação da solução original do Ribeiro Telles. São elementos que queremos preservar, as lajes de calcários, os bancos de jardim tradicionais que queremos reciclar e instalar mais, diz José Ferreira.
Também os candeeiros originais serão mantidos, ainda que “com prejuízo da qualidade da iluminação”, dado que não é possível instalar tecnologia LED, explicou André Caldas.
O espaço verde orgânico versus a rigidez da arquitectura
O bairro foi construído entre 1949 e 1954 e foi projectado pelos arquitectos Ruy Athouguia e Sebastião Formosinho Sanchez. A obra, encomendada pela câmara de Lisboa, rompeu com o modelo de arquitectura tradicional, ao gosto do Estado Novo, ao erguer os edifícios sobre pilares - as estacas que dão nome ao bairro – e sob o tapete de natureza projectado por Ribeiro Telles, ainda que "o plano de plantação [final] tenha acabado por ser relativamente diferente do projecto original”, referiu André Caldas.
No debate, o arquitecto Varandas Monteiro, que ali mora vai para 50 anos, considerou que as duas soluções "contribuem para a requalificação do espaço urbano e dos logradouros”. Mas alertou, contudo, para os materiais que possam ser utilizados na reconstrução dos acessos do bairro, assim como para as árvores com raízes superficiais que ali estão e que impedem que façam relvados.
Também presente na sessão, o arquitecto Leopoldo Criner, que chegou a trabalhar com Athouguia, sublinhou a "intenção de preservação”, presentes nos planos das junta. Ainda que tenha sublinhado que há aspectos que merecem atenção por parte dos projectistas. “O detalhe aqui é importante. Neste período, alguma rigidez da arquitectura contrapunha-se sempre à grande organicidade do espaço verde”.
“A solução de estacionamento para terem mais dez carros e estragarem [espaço verde] parece-me francamente mal”, apontou. Na resposta, André Caldas reforçou que são os “pequenos espaços que vão fazendo a diferença, mesmo que os moradores não reparem neles”.
Por ter ouvido falar num projecto para a requalificação da obra de Ribeiro Telles, a Ordem dos Arquitectos quis ouvir o que tinha a junta a dizer. “Não sei quem foram os projectistas nem se falaram com o arquitecto Ribeiro Telles”, começou por questionar João Sequeira, vice-presidente da Secção Regional Sul da ordem. "Isto não é um sítio qualquer", continuou, ressalvando que esta é uma obra “reconhecida internacionalmente”, premiada, em 1954, na Bienal de Arquitectura de São Paulo, e também com o Prémio Municipal de Arquitectura.
Ribeiro Telles “é uma pessoa muito aberta, muito receptiva, pode perfeitamente falar com os projectistas", aconselhou o arquitecto. Criticou a “geometria excessivamente rígida” que é proposta num jardim que tem uma “organicidade muito grande”, visível, por exemplo, na forma como os passadiços foram dispostos. Pediu atenção aos materiais que serão utilizados para que não desrespeitem o projecto original. “É um conjunto de valor inestimável, não há muitas obras destas. Devem tentar preservá-lo o mais possível”, rematou.
Na resposta, o presidente da junta mostrou-se disponível para reunir com a Ordem dos Arquitectos. “Este é um processo preliminar para criarmos um pacote de propostas que vamos apresentar ao município de Lisboa para o ciclo de delegações de competências que está a ser preparado para 2018-2021”, referiu o autarca de Alvalade, antecipando desde já “um calendário muito longo de implementação” do projecto. "São bases se trabalho. É muito provável que existam outros debates", até porque o projecto terá de passar pelo “crivo” da Direcção-Geral do Património Cultural. E agradeceu o contributo dos moradores que encheram “muitas páginas de anotações para incorporar" na proposta de requalificação dos espaços verdes do Bairro das Estacas.