Luís Onofre: "Falta mão-de-obra tanto na fábrica como no design"
Luís Onofre, presidente da associação do calçado, não está preocupado com o abrandamento do crescimento das exportações. Para ele, o sector continua a ganhar músculo para um novo salto. A indústria digital, a promoção das marcas e a aposta nos Estados Unidos são a nova fronteira do calçado nacional
Em vésperas de mais uma edição da MICAM, a mais importante feira internacional do sector do calçado que decorre em Milão, Luís Onofre faz o balanço dos seus primeiros meses à frente da Associação da Indústria de Calçado, Componentes, Peles e Sucedâneos e constata que a “resiliência” do sector é o ingrediente fundamental para o seu sucesso. Depois dos avanços na afirmação da marca Portugal, a APICCAPS aposta agora nas marcas e reforça a ambição no mercado dos Estados Unidos. Pelo meio, as empresas dispõem de 50 milhões de euros para apostar na indústria digital.
O calçado continua a ser a indústria mais sexy de Portugal – e da Europa?
Eu acho que sim. É um slogan que se vai manter
Porquê?
Acho que sim porque é uma indústria que a cada ano se revitaliza, se transforma no sentido positivo, na qual temos feito coisas incríveis. Se olhássemos para há dez anos para o que fazíamos e o que estamos a fazer agora, tanto a nível de qualidade como a nível técnico, veríamos uma evolução enormíssima. Estamos no bom caminho
Em 2017, pelo segundo ano consecutivo, o sector cresceu apenas 3% nos mercados externos. Acredita que se pode regressar aos ritmos de crescimento que fizeram aumentar as vendas ao exterior em 50% entre 2009 e o ano passado?
Houve um aumento grande, que tem vindo a abrandar. Nem tudo pode continuar a evoluir de forma vertiginosa. Tomara que fosse assim. A globalização, toda a reformulação do comércio mundial, mudou. Estamos numa fase de viragem de mercados. Há tanta coisa que se tem passado à nossa volta, o próprio Brexit, para onde vai uma grande parte das nossas exportações.
O calçado pode ter atingido o seu limite potencial de crescimento?
Eu acho que não. Eu não gosto de fazer futurologia, principalmente com calçado, onde tudo é sempre relativo. O próprio crescimento que tivemos até para mim foi uma surpresa positiva. Não vamos ter notícias negativas e porquê? Somos resilientes, o sector é feito de pessoas que se sabem adaptar às mudanças e a partir daí há condições para a continuação das boas notícias. A dificuldade técnica, da própria produção, é física e mentalmente desgastante; a cada seis meses temos de apresentar colecções; o ritmo é cada vez maior porque agora também temos as pré-colecções na calha, ou seja são quatro colecções por ano; as condições climatéricas alteraram-se cada vez mais e nós temos de estar adaptados a isso – por exemplo, termos um Inverno que quase não existiu, influenciou as vendas. Na agricultura costuma haver subsídios quando há intempéries e nós no sector da moda também estamos muito expostos a este tipo de situações. No Inverno, quando não chove, obviamente as botas não se vão vender. Se for um Verão chuvoso, temos os mesmos problemas com as sandálias. Tudo isto são factores muito imprevisíveis.
Os números dos últimos anos mostram que o principal motor de crescimento externo é o espaço extra-europeu (7,7% contra 2,3%), com destaque para os Estados Unidos. A América do Norte é há anos uma promessa. Vão continuar a apostar aí?
Sim, o mercado americano, independentemente das políticas, é um mercado em crescimento. Já venho a falar há muito tempo sobre esse mercado, principalmente no potencial que pode ter para as marcas. Será lá que poderão ter um reconhecimento mundial. A partir daí pode haver um boom muito grande na produção e no crescimento deste sector. Estamos a preparar uma acção muito grande para os EUA, à nossa dimensão claro, na área do marketing. Queremos fazer com que o calçado português seja conhecido, que seja uma mais-valia do nosso país, que as pessoas comecem a interpretar o nosso calçado como algo com qualidade. Se essa nossa mensagem conseguir ser transmitida aos norte-americanos, que é o mais difícil, temos as portas abertas. Porque nós a qualidade já a temos. Temos a qualidade, temos o know how, temos capacidade de fazer entregas on time. Por norma, o português é um povo desenrascado e nós sabemos aproveitar essa qualidade como ninguém. Conseguimos fazer determinados milagres que outros países não conseguirão. É uma das mais-valias do nosso sector. O mercado dos Estados Unidos tem uma capacidade financeira e aquisitiva muito grande, o que nos permitirá colocar produtos com um mais valor acrescentado.
Estão previstos 50 milhões de euros no programa Footure para adaptar o sector à indústria digital. Do ponto de vista de produção, pode-se dizer que as fábricas nacionais competem com as melhores?
Sim, estamos na vanguarda. Há empresas muito boas que estão a utilizar tecnologia de ponta e isso permite uma mais-valia muito grande para o sector. A última empresa que visitámos, a Kyaia, é uma unidade fabril totalmente renovada, com tecnologia de ponta, com um potencial incrível. É nesse caminho que o sector do calçado deve ir, mobilizando a tecnologia a nosso favor, facilitando a produção e criando ferramentas úteis aos nossos colaboradores para que a usem de forma positiva. Não digo para produzirem mais, mas para produzirem melhor.
Como é que a tradição industrial entra nessa equação?
A tradição é intrínseca. Nós tentamos usar a parte digital unida com o know-how de gerações. Por exemplo, é muito interessante fazer a mistura da construção do sapato, que tem uma componente manual enormíssima, com o digital, que nos poderá ajudar em muitas variantes. Um sapato é composto por centenas de materiais diferentes, o calçado é provavelmente a indústria que a jusante e a montante mais indústrias reúne: a indústria das caixas, das aplicações, das colas, das telas, enfim, uma enorme panóplia de produtos. Precisamos de armazéns inteligentes para produzirmos rapidamente novos modelos, cada vez mas personalizados, até porque a personalização online tem vindo a acontecer. Queremos estar na vanguarda da indústria 4.0 e acho que vamos consegui-lo.
Diria que a maioria dos industriais é receptiva a essa mensagem de urgência de modernização ou apenas uma vanguarda está a par do que é a Indústria 4.0?
Mudar pode custar para já um bocadinho. Custa sempre. Mas as mudanças são sempre benéficas e este sector já deu conta que é assim. Custa ao princípio, mas penso que se pode entranhar rapidamente. Essa é a nossa vantagem. Outra vantagem é que temos empresas que vão na terceira ou quarta geração, o que permite dizer que grande parte da nossa indústria é composta por uma geração aberta a estas situações. A renovação geracional é importantíssima para a implementação do projecto e de tudo o que tenha a ver com o potencial digital na produção, na área de marketing, a nível técnico.
Portugal é melhor a fazer calçado do que a vender calçado?
Ainda somos a melhores a produzir calçado. Havemos de chegar ao dia em que poderemos dizer que somos os melhores a vender esse melhor calçado. A única coisa que nos falta é conseguir a parte do marketing, de um bom marketing, para o qual é, infelizmente, preciso muito dinheiro. Para irmos a Paris fazer algo diferente, e só por fotografarmos em Paris, temos de pagar 3500 euros. Uma empresa ou uma marca que queira ter repercussão mundial tem de estar preparada para gastar muito dinheiro. Por vezes as pessoas não entendem que um sapato custa determinado preço porque tem por detrás uma estrutura de custos enormíssima.
Um dos segmentos da indústria que mais cresce é dos artigos de pele, que, até há bem pouco tempo, era de alguma forma subalternizado pelos industriais. O que levou o sector apostar em malas ou em cintos de pele?
Começamos pela mulher e no gosto que ela tem em usar uma carteira, que hoje é uma peça fundamental no seu guarda-roupa. Já era assim há 20 anos, mas agora é mais – não falo do homem que pode usar uma mochila ou algo mais prático. E as mulheres preferem e optam por algo bom, algo que possa durar uma vida. Isso ganhou força nas grandes marcas, que hoje apostam forte na marroquinaria, seguindo-se o calçado e o vestuário em terceiro lugar. A marroquinaria é fundamental para uma marca hoje em dia.
O que a indústria faz é cavalgar essa tendência?
Sim, sim. Mas também estamos a melhorar na parte da qualidade. Tenho visto um crescimento grande a nível qualitativo nos dois ou três últimos anos. Ainda não estamos ao nível dos melhores, mas vamos estar se continuarmos neste ritmo. É algo em que eu insisto: pedir a estas firmas que produzem marroquinaria que se adaptem aos tempos modernos. Hoje em dia a mulher olha para uma carteira do princípio ao fim. Qualquer tipo de defeito será notado.
A APPICAPS vai afinar a sua estratégia, dedicando mais atenção à promoção das marcas. Essa estratégia tem implícita a ideia de que a imagem do país nesta indústria está já consolidada?
O made in Portugal começa a ter um peso enorme. Isso vai-nos facilitar e abrir portas para as marcas poderem ser finalmente e realmente reconhecidas, tendo o valor que merecem. É um trabalho difícil, não prometo que seja feito até daqui a cinco ou a dez anos. É algo que estamos a construir. Estamos a lançar uma semente para daqui a uns anos. É importante que haja cada vez mais designers, pessoas que queiram vir para este sector, que é um dos problemas deste momento – a falta de mão-de-obra especializada. Estamos a tentar fazer a diferença, a promover nas escolas no nosso sector, a convidar pessoas com capacidade para virem trabalhar connosco.
Essa falta de mão-de-obra nota-se mais ao nível de operários ou de quadros superiores?
Falta tudo. Em todos os sectores. Tanto na fábrica como na parte técnica, de design, de engenharia – podemos chamar-lhe assim. Mas acima de tudo pessoas que saibam compreender a filosofia das marcas.
Será porque os salários são baixos?
Não são baixos. Ou melhor, serão baixos, mas a verdade é que nós como sector produtivo ainda conseguimos pagar um salário bastante acima de quase todos os outros sectores industriais. Mas estou de acordo que os salários devem subir proporcionalmente à produtividade.
O que é feito das novas gerações de empresários que foram sendo anunciadas nos últimos anos? Há casos de sucesso capazes de justificar a ideia de que a indústria é capaz de criar novas marcas?
Não são tantos como queríamos. Mas tem havido algumas marcas que estão a crescer, a lançar a semente para daqui a uns anos criarem as suas raízes. Eu tive a sorte de ter por trás uma empresa familiar que me ajudou a criar uma marca. Se calhar há uns anos era mais difícil ainda um designer do calçado chegar a uma empresa e dizer, ‘eu quero fazer uma coisa minha’. Ninguém acreditava. Hoje temos as portas abertas a esse tipo de propostas, a novos criadores que queiram vir fazer as suas coisas para as nossas empresas. Só temos a agradecer que isso aconteça.
Por que razão há tão poucas empresas do calçado português com dimensão mundial, como acontece por exemplo com a espanhola Camper?
Nós somos um país pequeno e à nossa dimensão a nossa indústria deu um passo de gigante. É isso que temos de continuar para o futuro. Tentar implementar cinco ou seis marcas, quantas mais melhor, para dar força ao made in Portugal. Passa tudo pelo marketing. Basta contarmos a nossa história e termos alguém do outro lado para a ouvir, para se perceber que temos das melhores indústrias do mundo,
Está na presidência da APPICAPS há menos de um ano. Qual foi o maior desafio que teve de viver até agora?
Temos feito várias coisas em simultâneo que penso que poderão dar resultado num futuro próximo. Não gosto de falar de coisas que ainda não estão realizadas. Mas uma das situações em que eu prevejo que possamos alcançar rapidamente, que é uma situação injusta, é a forma como são taxadas as horas extraordinárias. Um exemplo: como não temos mão-de-obra suficiente para este sector, temos de correr a horas extraordinárias. Mas feitas as contas os trabalhadores receberem menos com as horas extraordinárias por causa dos impostos. Estamos a tentar mudar isso o mais rapidamente possível. É muito complicado as pessoas irem trabalhar só com o intuito de ajudar – temos de agradecer aos nossos colaboradores por entenderem o nosso sufoco. É complicado fazer umas horas sabendo que se vai receber menos. Essa é uma das situações em que estamos a trabalhar. Depois há a aposta no mercado dos EUA, a indústria 4.0 que vai dar frutos muito em breve… enfim: aos pouquinhos vamos fazendo o nosso trabalho.
As feridas abertas na última eleição estão saradas? O sector está pacificado e unido?
Eu acho que sim. Já nem quero nem gosto de falar nisso, francamente. Foi algo que me marcou um bocadinho naquela altura, mas passou, as coisas estão sanadas. Estamos todos a fazer com que este sector vá para a frente.