Na rota das amêndoas, laranjas, enguias e contrabandistas

A subida do Guadiana reserva descobertas inesperadas. Entre o mar e a serra, um território afectado pela desertificação redescobre as suas histórias e os seus produtos. E estes sabem àquilo que já quase tínhamos esquecido.

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Ricardo Bernardo

Dez da manhã a bater no relógio da igreja quando chegamos a Cacela Velha. Alguém levou espumante e, com as ostras que Jorge Minhalma trouxe, ninguém tenta sequer argumentar que é cedo de mais para começarmos a comer e a beber. Abrimos as ostras ali mesmo, servimos o espumante nos cálices de plástico e ficamos a olhar a ria, aproveitando o sol da manhã, enquanto Jorge nos conta como o assoreamento está a ameaçar a produção.

Outros produtores já desistiram de ter na zona os viveiros de ostras e Jorge acredita que o seu também tem os dias contados porque a areia está a pouco e pouco a avançar e as ostras, que ali se produzem com grande qualidade, já não passam debaixo de água o tempo suficiente para crescerem como se pretende.

Começa assim, com ostras e sol de Inverno, uma viagem, organizada pela associação Odiana (o antigo nome do rio), que nos vai levar Guadiana acima para descobrir outras formas de conhecer o Algarve — e, sobretudo, os produtos algarvios que esta paisagem nos oferece. Connosco, dois chefs, o pasteleiro Francisco Siopa (Penha Longa, Sintra) e Gonçalo Costa (restaurante Tágide, Lisboa), que hão-de cozinhar mais para a frente na viagem.

O rio e as enguias

Daí a pouco estamos já à beira do rio, na foz do Odeleite, onde encontramos dois pescadores, pai e filho, Augusto e Ricardo Gonçalves, acabados de chegar de uma pescaria. Enquanto descarregam as caixas, contam que também aqui tem havido mudanças. “A água devia estar escura, era sinal de que as ribeiras tinham descido”, diz Ricardo, apontando para a água limpa do rio. “Se isso tivesse acontecido, apanhava-se o dobro ou o triplo das enguias.” Com a falta de chuva, nem as ribeiras desceram nem o rio se encheu dos nutrientes necessários para que o peixe que tradicionalmente por aqui anda apareça.

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Ricardo Bernardo

Mas nem tudo são más notícias. As caixas que saem do pequeno barco de Augusto e Ricardo têm robalos, barbos, uma dourada. Com o rio mais baixo, a água do mar avança por ali dentro e traz com ela os peixes do mar que antigamente não se encontravam por aqui. “Pescamos aqui no rio em águas de maior salinidade e apanhamos estas espécies”, aponta Ricardo. “Antigamente, estes peixes de água salgada não entravam aqui.” É que, reforça o pescador, “a água da chuva faz tanta falta no mar como em terra”.

Quanto às enguias, “não é verdade que estejam em vias de extinção”, garante o pescador, terceira geração de uma família do Guadiana. “O que se passa é que as licenças são tão restritivas que não há registo das capturas.” Seja como for, havemos de encontrar enguias, especialidade desta zona, no nosso caminho rio acima. Deixamos Augusto e Ricardo na pesca enquanto a temperatura da água ajuda — depois de Março ou Abril, dizem, as águas começam a aquecer e o rio enche-se de espécies invasoras como as alforrecas. “Essas, se mas comprassem, podia esvaziar o barco de duas em duas horas”, assegura Ricardo, estendendo-nos a mão e desejando-nos boa viagem.

Temos um barco à nossa espera mas, antes disso, mais uma paragem para conhecer o Museu do Rio, em Guerreiros do Rio, numa breve visita guiada por Júlio Cardoso, técnico de turismo da Câmara de Alcoutim, que começa por nos enquadrar: “Estamos num dos maiores concelhos do Algarve e também num dos mais desertificados do país.” Mas actividades não faltam para chamar visitantes, do festival gastronómico Sabores da Serra ao Rio (em Abril) ao Festival do Contrabando (de 23 a 25 de Março) que junta Alcoutim e, do lado espanhol da fronteira, Sanlucár de Guadiana (Huelva, Andaluzia).

E, a propósito de contrabando, por entre as réplicas das embarcações do Guadiana em meados do século XX, construídas por José Murta Pereira e expostas no museu, vamos ouvir Júlio recordar esses tempos em que o rio que agora nos parece estreito se tornava um obstáculo difícil para quem o atravessava à noite, em silêncio absoluto, carregando grandes sacos e tentando não ser notado pelos guardas de um e do outro lado.

“No século XIX, o principal produto que se transportava era o gado cavalar, pelos grandes bandoleiros da serra Morena”, conta. “No século XX, na época da fome, passava-se café, ovos, vinho, figos, trigo. E os contrabandistas não se limitavam a deixar o produto do lado de lá, iam até Huelva, com uma carga que pesava no mínimo 30 ou 40 quilos. De lá traziam amêndoas, tecidos.” Ficamos ainda a conhecer as diferentes artes de pesca usadas no passado (e algumas ainda hoje) no Guadiana e descobrimos que houve esturjão no rio. Garante Júlio que “o último foi visto nos anos 1930 e pesava mais de 80 quilos”.

De barco até aos dois castelos

Entramos no barco da empresa Fun River que nos leva Guadiana acima até Alcoutim. Espanha a dois passos (ou melhor, a duas braçadas), margens cheias de canaviais, canas que dantes eram aproveitadas para a cestaria mas que se tornam um dos factores de poluição natural do rio.

Vamos comendo umas deliciosas amêndoas da região e, da pastelaria A Prova, do Azinhal, umas estrelas de figo seco com amêndoa e uns bolinhos de alfarroba, até avistarmos os dois castelos frente a frente, um na margem espanhola, o castelo de San Marcos, em Sanlúcar do Guadiana, e o outro em Alcoutim, e o slide (ou tirolesa) transfronteiriço no qual se pode atravessar os 720 metros entre os dois países, por cima do rio, a uma velocidade entre os 70 e os 80 quilómetros por hora.

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Não chegámos a fazer o voo sobre o rio, mas a viagem de barco tinha sido suficiente para nos abrir o apetite. Por isso, o destino seguinte foi a Taberna do Ramos, onde não disfarçámos a alegria de sermos recebidos por uma lareira acesa, que nos permitiu recuperar do frio que fazia no rio. Alegria que se foi multiplicando à medida que chegavam à mesa a canja de perdiz, as enguias fritas (cá estavam elas), o ensopado de enguias e ainda perdiz e coelho fritos com batatas fritas e salada. No final, depois da sobremesa de pudim de mel e outros doces da casa, o senhor Ramos não nos quis deixar partir sem um medronho para aquecer.

Do porco ao prato

O capítulo que se segue não é aconselhável a vegetarianos, mas despertará a inveja de quem gosta de todos os produtos que têm origem num porco (Anthony Bourdain devia passar por aqui). Deixamos o Guadiana para trás e dirigimo-nos para o interior, com destino ao Zambujal. É aí que a família Jerónimo tem a sua empresa Feito no Zambujal.

Rui cumprimenta-nos à chegada, mas, antes de qualquer outra coisa, vamos conhecer os porcos, que parecem indiferentes à nossa visita, mas tornam-se visivelmente mais entusiasmados quando chega o funcionário que lhes traz a comida. Durante alguns minutos, calamo-nos ouvindo os animais a comer sofregamente a mistura de mosto de uva, milho, farelo e couves com um som que parece o de água a correr.

O que se seguirá é um autêntico encontro de família. Os Jerónimo fazem-nos sentir como se tivéssemos chegado a nossa casa e daí a pouco estamos a espreitar por uma janela onde uma das senhoras faz torresmos e a roubar um, antes de, devidamente fardados, nos dedicarmos a uma patética tentativa de ajudarmos a encher paios na pequena sala de produção da casa. As funcionárias insistem para que voltemos a tentar, mas a tripa (verdadeira) já se rasgou nas duas tentativas anteriores e sentimos o peso da responsabilidade.

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Com a paciência das senhoras, cabeça ao lado e um meio sorriso enquanto nos observam, lá conseguimos entregar pelo menos um paio inteiro, enquanto, na outra bancada, Gonçalo Costa se dedica a fazer uma marinada para os cabritos do almoço do dia seguinte. Terminado o trabalho (o nosso, pelo menos, que o de quem trabalhava a sério continuou), passámos para a sala ao lado, onde uma mesa corrida em L rapidamente se encheu de pão, queijo de cabra feito na região, paio e presunto da casa e vinho local.

Na sala aquecida, as conversas multiplicavam-se à medida que iam chegando mais amigos, entre os quais Jorge Raiado, da Salmarim, e Paulo Paulino, vice-presidente da Câmara de Alcoutim. Lá fora, numa grelha improvisada em cima de um carrinho de mão, iam-se grelhando as carnes, mas entretanto, para aquecer, chegava à mesa um cozido de grão. As deliciosas laranjas e as couves que tínhamos apanhado à tarde na horta também apareceram, ao lado das batatas assadas e de uma generosa salada de alface.

Também aqui, depois do bolo caseiro, a despedida fez-se com um medronho. A noite já ia longa e o nosso programa continuava no dia seguinte, por isso despedimo-nos dos Jerónimo e regressámos ao Praia Verde Boutique Hotel, trocando, brevemente, a serra pela praia, porque, afinal, tudo fica a poucos quilómetros de distância.

O pão fresco de Odeleite

Na manhã seguinte, antes do regresso a Lisboa (a Fugas não pôde ficar para o almoço feito por Gonçalo Costa e Francisco Siopa), houve tempo para ir amassar o pão com a dona Hortense, na Casa de Odeleite, na aldeia de Odeleite. Recuperada em 2013 pela Câmara Municipal de Castro Marim e transformada em espaço cultural, a Casa de Odeleite foi, no início do século XX, a residência de Claudina Dias e João Xavier de Almeida, que aqui se suicidou em 1933, aos 46 anos (numa divisão adjacente ao quarto de dormir, que se pode visitar).

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A casa, mantida como era em vida de João Xavier de Almeida, republicano activo e figura admirada na zona e além dela, guarda a memória desse tempo em que funcionou como entreposto comercial para toda a região. Era aqui que chegavam os produtos vindos de fora e era daqui que partiam aqueles que se produziam em redor, sobretudo amêndoas e cestaria. A investigação feita em torno da casa permitiu a recuperação de 1500 objectos originais e muitos documentos relacionados com a actividade comercial de João Xavier de Almeida, mas o objectivo é que, além disso, este seja também um espaço vivo, em que se continua, entre outras coisas, a fazer pão. É por isso que vamos ter com a dona Hortense, que está à nossa espera para meter, literalmente, mãos à obra e começar a amassar a farinha com a água, morna, que com este frio não se pode fazer de outra maneira, batendo-a energicamente antes de lhe juntar a massa mãe — Gonçalo Costa faz, num recipiente mais pequeno, um outro pão com a banha que trouxe na véspera do Feito no Zambujal.

Quando nos despedimos, a massa descansa bem tapada, os dois chefs já preparam o almoço na cozinha da Casa de Odeleite e, no forno a lenha, a esteva arde, deixando no ar um cheiro bom que promete pão fresco.

A Fugas viajou a convite da associação Odiana

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