Porque não podemos ver a justiça a ser feita no julgamento de Salvato Trigo?
É tão raro, se é que alguma vez aconteceu, que ninguém parece lembrar-se de um julgamento por desvio de dinheiro que tenha sido feito à porta fechada. O que convenceu o juiz? Ainda não sabemos. Houve argumentos poderosíssimos ou o juiz usou um filtro demasiado alargado?
Será esticado dizer que o despacho de 1924 do juiz inglês Gordon Hewart é poesia, mas não muito. Foi este homem, antigo jornalista do Guardian e mais tarde lorde e chefe máximo do poder judicial da Inglaterra e País de Gales, quem tornou a sua deliberação no caso R versus Sussex Justices, em nome de um motociclista de apelido McCarthy, nesta bela imagem: a justiça tem de ser feita e tem de ser vista a ser feita.
A frase completa é esta: “Um longo historial de casos mostra-nos que não é meramente uma questão de pouca importância, mas sim de importância fundamental que a justiça seja não apenas feita, mas manifesta e indubitavelmente vista enquanto é feita.”
Esta semana ficámos a saber que isso não vai acontecer no julgamento de Salvato Trigo, o reitor da Universidade Fernando Pessoa acusado de desviar três milhões de euros. O arguido pediu para ser julgado à porta fechada e o juiz José Guilhermino Freitas, da Instância Local Criminal do Porto, concordou. O julgamento começou em Outubro e só soubemos que está a decorrer graças a uma notícia do PÚBLICO publicada esta segunda-feira.
Ao ler — e não se tratando de crimes sexuais, tráfico de pessoas, segredos de Estado, segredos de negócio, segurança do país ou do mundo, e não havendo crueldade e crueza extremas, nem vítimas menores — lembrei-me imediatamente do Personal History, a autobiografia de Katherine Graham, onde a antiga dona do Washington Post conta um episódio inesquecível do processo dos Pentagon Papers: “A certa altura, um advogado do Governo disse ao juiz [Gerhard] Gesell que, claro, os arguidos [o jornal] não estariam presentes na audiência, que, claro, teria de ser secreta. Gesell respondeu-lhe com firmeza: ‘Não fazemos as coisas dessa forma.’”
Em Portugal começamos logo pelo problema clássico de não sabermos exactamente qual é a forma como fazemos as coisas. Há muitos julgamentos à porta fechada ou há poucos? Qual é o padrão dos últimos dez anos? E o das quatro décadas de democracia?
Não há dados. O Ministério da Justiça não tem. O Conselho Superior da Magistratura não tem. A Associação de Juízes não tem. O Observatório Permanente de Justiça não tem. Das 11 pessoas que contactei nos últimos dias, quase todos juízes, ninguém se lembra de alguma vez ter visto um levantamento oficial ou académico sobre quantos julgamentos em Portugal são feitos à porta fechada e que motivos são invocados. Não será surpresa para ninguém dizer que, no Google, numa pesquisa de quatro minutos, encontrei o Report on use of closed material procedure, um relatório do Ministério da Justiça britânico sobre a nova — e controversa — lei do ex-primeiro-ministro David Cameron que alargou aos tribunais cíveis a possibilidade de uso das closed material procedures que permitem fechar a porta de um julgamento. Conclusão: no primeiro ano, a lei foi aplicada cinco vezes e sempre em casos de segurança nacional.
Um envolvia dois suspeitos de terrorismo e foi alegado que um julgamento público revelaria “avaliações” secretas da ameaça terrorista na África oriental; noutro, um homem do IRA foi acusado de ainda estar ligado a “grupos dissidentes” mal foi libertado da prisão e os procuradores queriam esconder a fonte dessa informação; noutro, foi pedido o fecho de uma audiência para defender uma ordem de congelamento de bens contra arguidos acusados de envolvimento no programa nuclear do Irão, etc.. No Reino Unido, ainda hoje se discute o misterioso caso do milionário Allan Chappelow, assassinado na sua casa de Hampstead Village, em Londres. O emigrante chinês Wang Yam foi condenado a prisão perpétua em 2009, mas continua a reclamar inocência. Este foi o primeiro julgamento por homicídio feito à porta fechada na História britânica moderna e é dado como exemplo do efeito nocivo que fazer-se justiça sem transparência tem na democracia.
Em Portugal, não são raros os julgamentos à porta fechada. Um madeirense acusado de violar e matar a mãe de 80 anos começou a ser julgado esta semana com "exclusão de publicidade", como se diz em juridiquês. O mesmo aconteceu com o homem acusado de ter violado uma adolescente e atacado sexualmente uma criança de 10 anos; com o professor de educação física de Penafiel acusado de 439 crimes de abuso sexual contra crianças dos 7 aos 12 anos; com os adolescentes que assassinarem um travesti no Porto; com o médico do centro de saúde de Oliveira de Azeméis acusado de filmar pacientes menores semi-nuas com um telemóvel escondido; com o padre burlado por um professor de dança cubano, seu amante; com o ex-funcionário do Serviço de Informações de Segurança suspeito de ter vendido segredos da NATO a um espião russo. Em todos, o mais elementar bom senso diz que se aplicou bem o espírito da lei.
O Código de Processo Penal (artigo 87º) diz que pode haver “restrição” da “livre assistência do público” — a tal “exclusão de publicidade” — se forem apresentados “factos ou circunstâncias concretas” que “façam presumir” que um julgamento aberto causaria “grave dano à dignidade das pessoas, à moral pública ou ao normal decurso” do processo. A própria lei diz que fechar a porta é a regra nos crimes sexuais e de tráfico humano. E a Constituição diz que (artigo 206º) as “audiências dos tribunais são públicas, salvo quando o próprio tribunal decidir o contrário, em despacho fundamentado, para salvaguarda da dignidade das pessoas e da moral pública ou para garantir o seu normal funcionamento”.
Que "circunstâncias concretas" convenceram o juiz que está a julgar Salvato Trigo? Na notícia do PÚBLICO, José Guilhermino Freitas deu uma resposta genérica. Fechou a porta para proteger "a dignidade e a honra dos visados, a reserva da vida privada e familiar, a protecção dos dados pessoais, o sigilo profissional e fiscal, o normal decurso da audiência, a boa administração da justiça e a garantia da presunção da inocência e do julgamento justo e equitativo". Parece um copy-paste de todas as possibilidades que a lei prevê.
Todos os juízes e advogados que ouvi fizeram um aviso: não é possível ajuizar sem saber o que está nos autos e o que fundamentou a decisão. Mas todos dizem também outra coisa: como “a regra sagrada é a da publicidade”, os motivos do juiz têm que ser "muito ponderosos” e "excepcionalíssimos”. E outra ainda: fechar a porta não é padrão neste tipo de crimes. Não é por acaso que não encontrei ninguém que se lembre de um julgamento de um caso de desvio de dinheiro feito à porta fechada. A luz verde dada a Salvato Trigo foge ao que todos intuímos que é necessário proteger.
Se a intenção do reitor era evitar que se soubesse que é arguido, o segredo durou três meses. E veio com uma informação acoplada: Salvato Trigo já foi condenado a dez meses de prisão (pena suspensa) num processo de desvio de subsídios do Fundo Social Europeu. Formalmente, quem cumpriu uma pena é tão inocente como quem nunca foi condenado por nada. Mas é impossível não notar que não foi um cidadão sem mácula quem pediu ao juiz para abrir um excepção excepcionalíssima. Os juízes estão proibidos de perguntar aos arguidos se têm antecedentes criminais, mas não estão impedidos de ir ao Google.
Como não estamos na China, nem na Turquia, nem no Uzbequistão, fiz uma diligência em homenagem do lorde Hewart: pedi ao tribunal cópias do requerimento que Salvato Trigo entregou em defesa de um julgamento secreto e do despacho onde o juiz José Guilhermino Freitas explica porque achou isso uma boa ideia.