Os SillySeason discursam contra o cronómetro

Depois de Tchékhov, a companhia parte de um outro clássico da dramaturgia mundial, Tennessee Williams, como mote para uma nova criação. Sugar é uma peça da obrigação, da falta e da resistência.

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É uma festa. Uma festa fajuta. Um musical em que é celebrada a portugalidade como produto formatado para melhor deslizar pela escancarada goela do turista abaixo. Há música electrónica cruzada com fado, guarda-roupa feito de cortiça, vestidos estampados com azulejos, um festim de imagens que querem apenas providenciar a devida orgia de tradição e genuinidade ao prezado turista, aqui e ali dando-lhe um toque de cosmopolitismo para não esquecer que este é também um país moderno. O que vemos então no primeiro acto de Sugar, nova criação do colectivo SillySeason, é “Portugal como uma montra, um objecto de desejo, um produto”, clarifica Ivo Silva, um dos cinco elementos da companhia.

E se a festa é fajuta, então essa encenação da genuinidade vai-se tornando impossível de manter, e os sorrisos dos intérpretes vão perseverando com recurso a aparelhos ortodônticos que mantêm uns luzidios e bem-dispostos lábios de um impagável vermelho vivo. Mas a cada frase e a cada tentativa de cantar, os aparelhos tanto garantem a artificialidade da situação quanto levam a que os actores se babem enquanto continuam a deitar palavras para fora. “De repente, começa a cansar, começa a doer e não conseguimos mais conviver com aquilo porque é só fachada”, dizem. “Aquilo” designa um sistema que os obriga a permanecer na superficialidade, uma entidade que é fácil de imaginar como sendo uma tradução do sistema capitalista, mas que não tem nome, nem forma e apenas obriga os intérpretes a entregarem-se à esperança da salvação providenciada por um qualquer dom Sebastião. Mas, como é sabido, dom Sebastião continua perdido e não há manhã de nevoeiro que o faça surgir com qualquer solução nos braços.

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É então que o primeiro acto de Sugar entra em falência e o público é convidado a deixar o palco e ocupar o seu lugar na plateia – do Teatro Helena Sá da Costa, Porto, dias 2 e 3 de Fevereiro, e da Escola de Mulheres, Lisboa, de 28 de Junho a 1 de Julho. Com o estômago cheio de superficialidade, com a montra sem espaço para albergar mais um símbolo do Portugal pitoresco e vendido a turistas, os SillySeason avançam para um segundo acto em que se decidem pelo aprofundamento individual do conceito de falta. Tudo aquilo que antes faltava – uma espécie de ressaca que se vira para dentro à procura de uma identidade em crise. São pequenas cenas a partir de ensaios pessoais que surgiram “sob a forma de manifesto à Almada Negreiro”, propostas por cada um dos cinco elementos, que se desenrolam contra um cronómetro cada vez mais acelerado e que, a prazo, resultarão numa total perda de controlo e numa cacofonia desabrida. Nenhuma cena chega a concluir-se, sendo sempre precedida pela frase suddenly, last Summer.

Como facilmente se intui, nada há de acidental na coincidência entre essa frase (que rasga uma cena em pedaços e abre o espaço para aquela que se lhe segue) e o título da peça homónima de Tennessee Williams. Tal como já haviam feito com O Cerejal, de Tchékhov, em Prado de Fundo, também aqui os SillySeason começaram por querer trabalhar a memória a partir de um clássico. No caso da peça de Tennessee Williams, tratando a memória como matéria pouco fidedigna que é, algo sugerido pelas duas versões discutidas em cena acerca da morte de Sebastian Venable, poeta que falecera em Espanha, em circunstâncias, pouco claras no Verão anterior.

Sebastian era, portanto, um turista. E foi a partir desse dado, isolado até se desligar quase por inteiro do restante texto de Williams, que o colectivo iniciou uma série de improvisações em torno dos conceitos de memória e de turismo. “Depois ainda tentámos voltar à peça inicial e dialogar com ela, mas percebemos que as cenas que tínhamos produzido nos faziam mais sentido e nos pareciam mais ricas para aquilo que pretendíamos discursar com o espectáculo”, justifica Ivo. “A partir desses conceitos genéricos extrapolámos para a nossa história pessoal, a nossa história social e pensando que, tal como a História são factos que alguém anotou e contou na sua perspectiva, nunca podemos confiar numa narrativa – seja ela qual for.”

Liberdade na montra

Oneohtrix Point Never no Spotify. Abertura de conta no Gmail. Podcast sobre bitcoin na BBC. Download de um ficheiro no MyAirBridge. Um par de likes em fotografias no Instagram. Vídeo a correr no YouTube. As janelas abertas no computador vão-se acumulando na tela de projecção até se tornarem intoxicantes e a dispersão ser impossível de acolher. É um segmento de Sugar que coloca em cima da mesa a incapacidade de alguém gerir demasiada informação, de isso gerar indecisão e de, nesses termos, ter uma opinião se tornar, por vezes, impossível por haver “várias verdades a coexistirem e nenhuma prevalecer sobre a outra”.

Esse segmento termina, como todos os outros que virão depois, com a súbita interrupção ditada por um cronómetro que pulveriza todos os discursos possíveis. Interrupção que acontece não por haver quem queira mudar a narrativa em curso ou propor uma alternativa, mas simplesmente porque a nenhum discurso é permitido ser concluído. Como acontece quando Ivo toma o palco, num agradecimento com espalhafato de Globos de Ouro, mas em que se dirige “ao senhorio, aos programadores cínicos, aos vizinhos de cima que arrastam móveis às três da manhã ou ao banco que lhe rouba dinheiro todos os meses”. Como em qualquer cerimónia do género, a disponibilidade para escutar um discurso é quase inexistente. A ilusão de ter uma voz é total. Também aqui há um produto na montra: uma suposta liberdade de expressão e de acção, delimitada de novo por uma entidade abstracta que finge escutar enquanto retira a palavra.

Daí que Sugar caminhe para um final, com um lado assumidamente político, assumido como posição de resistência e de anúncio de que, enquanto houver quem dê ouvidos aos SillySeason, eles não aceitarão parar. Uma ideia perfeitamente alinhada com o sentimento de tentativa de inscrição da companhia, reclamando um lugar no meio artístico português. “Não é que nos sintamos injustiçados, nem nos querermos vitimizar”, ressalva Ivo Silva, mas há nesse fim a declaração de que, por mais portas que sintam continuar fechadas se forem eles – ou outras companhias em rota de afirmação do seu trabalho – a bater-lhes, hão-de continuar a tentar abri-las. Ou, pelo menos, a não desistir de deixar a sua impressão no mundo.

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