O Facebook deitou-se no divã
Pressionada por críticas, a rede social começa a reconhecer os próprios problemas: da crise das notícias falsas aos efeitos psicológicos em milhões de utilizadores. Zuckerberg prometeu resolver as falhas.
Em 2012 o mundo era diferente: Donald Trump estava muito longe de ser eleito, notícias falsas eram o resultado de jornalistas com pouca ética, dizer mal das redes sociais ainda não era moda entre colunistas, e o Facebook gabava-se de conseguir influenciar eleitores.
Naquele ano, uma equipa conjunta de investigadores da Universidade da Califórnia e do Facebook publicou um artigo na revista científica Nature cujo título antecipou acontecimentos dos anos seguintes: “Uma experiência com 61 milhões de pessoas sobre influência social e mobilização políticas”. Os académicos descreviam como tinham conseguido, nas eleições para o Congresso americano de 2010, incentivar pessoas a votar usando apenas algumas funcionalidades simples: uma mensagem de apelo ao voto, informação sobre os locais das urnas e um botão que permitia às pessoas dizerem à sua rede de amigos que tinham ido votar. Estas funcionalidades foram usadas várias vezes pelo Facebook nos anos seguintes.
As conclusões daquele artigo foram premonitórias dos dilemas que hoje o Facebook está a colocar a si próprio: “Os resultados sugerem que as mensagens online podem influenciar uma variedade de comportamentos offline, e que isto tem implicações para a nossa compreensão do papel dos media sociais na sociedade”, escreveram os investigadores. “Se queremos compreender verdadeiramente – e melhorar – a nossa sociedade, e o bem-estar do mundo à nossa volta, vai ser importante usar estes métodos para identificar os comportamentos do mundo real que podem ser moldados por intervenções online.”
Mais de cinco anos após a publicação dos resultados daquela experiência, o Facebook surge mergulhado numa reflexão sobre o seu próprio poder e sobre o impacto que tem na vida de milhões de pessoas. Representantes da empresa publicam textos em que reconhecem que a plataforma pode ser um problema para a democracia. Admitem não conhecer a solução para todos os problemas que têm em mãos. E até questionam as virtudes daquilo que tem sido a essência (e a alma do negócio) da rede social: fazer com que as pessoas passem o máximo de tempo possível a interagir umas com as outras dentro da plataforma.
O próprio Mark Zuckerberg adoptou como resolução de ano novo “consertar os problemas” do Facebook (em anos anteriores tinha metas mais modestas, como ler um livro por mês ou comer apenas carne de animais que ele próprio tivesse morto). Os resultados desta reflexão, e as mudanças que já estão a acontecer, vão moldar os próximos anos de uma rede social que é usada por cerca de um quarto da humanidade.
“Estamos a falar de impactos diferentes e alguns deles só vão ser claros nos próximos anos”, disse ao PÚBLICO o académico Charlie Beckett, director do Polis, um centro de reflexão sobre media e sociedade da London School of Economics. “Mas há claramente no Facebook uma questão relacionada com ‘fazer mal’. Facilitou a disseminação de desinformação prejudicial. Há questões em torno da saúde mental. O Facebook reconheceu tudo isto, a questão é saber se podem melhorar os aspectos negativos.”
Os avisos sobre os efeitos problemáticos das redes sociais sempre existiram, tanto na imprensa, como numa miríade de trabalhos académicos que procuraram analisar o impacto psicológico de contar likes e de comparar constantemente a própria vida com as vidas que os outros publicam. Mas os alertas parecem estar a avolumar-se – e a tornar-se mais acutilantes – nos últimos meses.
No final de 2017 correu pela Internet a notícia de que um antigo vice-presidente do Facebook tinha aconselhado uma plateia de universitários a não se deixarem enganar por algoritmos criados para sugar a atenção. “Sinto uma culpa imensa”, começou por dizer Chamath Palihapitiya, numa conferência na Universidade de Stanford. “Se alimentarem a besta, essa besta vai destruir-vos”, avisou, argumentando que as pessoas precisam de cortar com as redes sociais. “Não há discurso cívico, não há cooperação, [há] desinformação, mentiras. Isto não é um problema americano. Não são os anúncios russos. É um problema global. Está a erodir os alicerces de como as pessoas se comportam umas com as outras”.
Pela mesma altura, Sean Parker, um dos investidores iniciais no Facebook e o primeiro presidente não executivo da empresa, admitiu que a rede social explora “uma vulnerabilidade na psicologia humana”, que “provavelmente interfere na produtividade de formas estranhas” e que “só deus sabe” o que está a fazer aos cérebros das crianças (teoricamente, a idade mínima para se usar o Facebook é de 13 anos).
Já o colunista americano Nick Bilton (que é uma voz ouvida nos círculos da tecnologia) tem escrito repetidamente sobre os efeitos negativos do Facebook e das restantes redes sociais. Também entrevistou antigos funcionários que disseram estar arrependidos de terem ajudado a construir a plataforma. “Parece cada vez mais provável que a nossa sociedade veja um dia o nosso embevecimento pelo Twitter, pelo Facebook e por outros do género como uma moda passageira e muitas vezes destrutiva”, afirmou numa das suas colunas na revista Vanity Fair.
Sob pressão crescente, o Facebook abriu-se numa torrente de explicações. Em Dezembro do ano passado, investigadores da empresa publicaram um texto em que lançavam a pergunta: “Passar tempo nas redes socias é mau para nós?” (Faz parte de uma série de textos sob o tema “perguntas difíceis”, em que a empresa procura ser transparente sobre os problemas que tem e as dúvidas que assaltam os seus responsáveis).
Passando em revista alguns trabalhos académicos, os investigadores deram uma resposta de senso comum: demasiado tempo em plataformas como o Facebook é prejudicial, mas interagir com outras pessoas online tem efeitos positivos; terminar uma relação e continuar a seguir a vida do antigo companheiro é um problema; ver os perfis dos outros leva os utilizadores a fazerem comparações desfavoráveis consigo próprios; e os efeitos sobre as crianças ainda não são conhecidos.
Mais recentemente, o responsável da empresa pelo envolvimento cívico, Samidh Chakrabarti, reconheceu que as redes sociais podem ser más para a democracia e disse não conseguir assegurar que o saldo final seja positivo: “Gostava de garantir que os [efeitos] positivos estão destinados a compensar os negativos, mas não posso. Isto é uma nova fronteira e não fingimos que temos todas as respostas.”
No início de Janeiro, Zuckerberg disse que a sua resolução para 2018 será concentrar-se em resolver os vários problemas do Facebook: “O mundo sente-se ansioso e dividido, e o Facebook tem muito trabalho para fazer – seja proteger a nossa comunidade do abuso e do ódio, defendermo-nos contra a interferência de Estados ou assegurar que o tempo no Facebook é tempo bem gasto”. Poucos dias depois, voltava à carga num novo texto: para garantir que a rede social contribui para o bem-estar das pessoas, a plataforma continuaria o plano de mostrar mais conteúdos de amigos e familiares, e menos conteúdos de páginas de empresas, o que tanto inclui vídeos engraçados como notícias. Zuckerberg reconheceu que estas medidas podem fazer com que o tempo passado no Facebook seja menor, o que poderá ter impacto no negócio, que assenta essencialmente em mostrar anúncios direccionados. “Mas também espero que o tempo passado no Facebook seja mais valioso”, acrescentou.
O tom humilde dos textos recentes de Zuckerberg contrasta com a visão grandiosa que explanou no início de 2017. A ambição era tornar o Facebook numa plataforma para todo o tipo de interacções sociais e para a vida pública de cidadãos em todo o mundo. Praticamente apresentou a rede social como o próximo estágio da evolução da sociedade depois das nações. “A História tem muitos momentos como hoje. À medida que demos grandes saltos de tribos para cidades e para nações, tivemos sempre de construir infra-estruturas como comunidades, os media e governos para que pudéssemos prosperar e atingir o nível seguinte (...). Já o fizemos antes e vamos voltar a fazê-lo.”
Charlie Beckett, o académico da London School of Economics, avisa, contudo, que é preciso ter “cuidado” para não sobrevalorizar a influência do Facebook no mundo. E mantém algum optimismo. “É sobretudo um local para socializar e encontrar entretenimento, e uma máquina para fazer dinheiro a partir de publicidade muito barata e eficaz. Esses feitos podem não ganhar um prémio Nobel, mas aumentaram a nossa capacidade para desfrutar a vida. Isso é muitas vezes o que as pessoas querem.”