Proposta do PS dá um poder excessivo ao Estado para classificar documentos
Parecer da CNPD é apenas consultivo. Socialistas querem criar regime de classificação de informações considerado demasiado restritivo.
É um “universo potencialmente irrestrito”, que abarca todo o Estado central e regional. A Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) considera excessivo o leque de entidades às quais o PS quer dar poder para classificar documentos e informações como secretos ou reservados, assim como o tempo de duração da classificação, que pode ir até aos 30 anos. A comissão critica ainda o facto de a proposta socialista não prever a atribuição de competências de fiscalização sobre essa classificação a nenhuma entidade.
O projecto de lei socialista sobre o regime de matérias classificadas propõe que passem a ter competência para classificar, reclassificar ou desclassificar documentos e informações todas as entidades que sejam definidas por decreto pelo Presidente da República, por resolução da Assembleia da República, do Conselho de Ministros ou ainda pelos órgãos de Governo próprios das regiões autónomas. Uma panóplia de entidades que leva a CNPD a dizer, num parecer, que “não se percebe porque se alarga, desta forma, a um universo potencialmente irrestrito (dentro das margens do Estado central e regional) a capacidade” de classificar a informação. Até porque o anterior projecto do PS, que era muito parecido com o actual, previa uma lista muito extensa mas taxativa das entidades com tais poderes.
Ainda sobre quem pode classificar, a CNPD levanta dúvidas sobre a constitucionalidade de conferir aos órgãos de Governo das regiões autónomas o poder de classificara informação cujo conhecimento ou divulgação possam “prejudicar o interesse público nacional, o interesse de uma organização internacional de que Portugal faça parte ou o interesse de países aliados”.
A somar a esse excessivo poder que pode vir a ser distribuído a este universo estatal vem o facto de o diploma socialista não prever a atribuição a qualquer entidade de poderes de fiscalização sobre o processo de classificação – para perceber, por exemplo, se os critérios foram cumpridos, se o tempo de classificação e restrições é o adequado. Não existe “qualquer entidade que aqui fiscalize a classificação da informação e garanta o pleno respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos, sendo imperioso manter plenamente vigente e intocado o papel constitucional da CNPD”, lê-se no parecer, que tem carácter meramente consultivo. Aliás, a proposta do PS nem sequer salvaguarda o poder fiscalizador de entidades independentes, como é o caso da CNPD, que considera mesmo “inadmissível” que o legislador tenha a intenção de limitar a sua actuação.
Outra questão que levanta críticas é a duração da classificação, que pode ir até aos 30 anos – como acontece com o segredo de Estado – ou mesmo para além disso, por determinação do primeiro-ministro, mas só em matérias referentes a relações externas e defesa nacional. “Não se percebe a razão de consagrar prazos tão extensos para classificações que não se ligam ao segredo de Estado e que, portanto, não merecem o mesmo grau de restritividade no acesso”, diz a CNPD, que até considera a solução “desproporcionada” à luz da informação que se pretende classificar e da Constituição. Além de que confere apenas ao primeiro-ministro poder sobre matérias que tenham sido alvo de consideração do Presidente da República. A classificação pode ser revista a cada quatro anos (no máximo).
Para além da CNPD, a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias pediu também pareceres ao Gabinete Nacional de Segurança e à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, que ainda não responderam.
Em 2014, quando a maioria PSD/CDS mudou o regime do segredo de Estado e a orgânica das "secretas", o PS fez uma proposta muito semelhante à actual. Apesar de ter passado na generalidade com a abstenção dos restantes partidos, acabou por “morrer” na comissão, depois de a larga maioria dos artigos serem chumbados pela direita. Agora, questionado pelo PÚBLICO, o vice-presidente da bancada do PSD admite a necessidade de legislar sobre outras matérias classificadas que não o segredo de Estado, porque “há áreas a descoberto e um vazio legal”. A proposta do PS está “a ser estudada” pelo PSD, que ainda não sabe se irá propor alterações ou apresentar um projecto próprio, já que, tal como em 2014, é certo que não se revê em tudo o que os socialistas querem.