Serralves também é homoerótico
Em Setembro vamos poder ver pela primeira vez uma retrospectiva do trabalho do fotógrafo em Portugal. Quase 30 anos depois de ter desaparecido, ainda tem muito para dizer, diz o curador João Ribas.
A exposição ainda não tem título – e não é certo de que precise – porque Robert Mapplethorpe (1946-1989) basta-se a si próprio. Para a geração que hoje é grande consumidora de imagens – e não só, porque esta será a primeira exposição que uma instituição museológica dedica ao artista em Portugal –, a Fundação Serralves vai inaugurar a 20 de Setembro uma retrospectiva dedicada a uma das maiores e mais influentes figuras da fotografia no século XX, defende João Ribas, o comissário desta exposição organizada em conjunto com a Fundação Robert Mapplethorpe, de Nova Iorque. “O contributo dele é imenso. Tantas das imagens que vemos diariamente são influenciadas por ele.”
Ao Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto, chegarão cerca de 170 fotografias e também objectos. Há o clássico das suas imagens a preto e branco mais icónicas, depois há as colagens e esculturas, obras do início da carreira, e há ainda dois filmes que produziu, um com Patti Smith, a musa, namorada e cantora que descreveu esta amizade na Nova Iorque dos anos 70 nas memórias Apenas Miúdos (Quetzal, 2011).
O que vamos ver em Serralves não é uma adaptação da grande exposição Robert Mapplethorpe: The Perfect Medium, feita por várias instituições culturais de Los Angeles, à qual o Ípsilon dedicou um dossier em 2016, actualmente ainda a circular, e que afirmou Mapplethorpe como um dos mais influentes artistas visuais da segunda metade do século XX. Serralves vai mostrar na sua ala direita – quatro salas, mais um corredor - uma exposição feita de raiz para Portugal, resultado de um trabalho de pesquisa desenvolvido pelo comissário na Fundação Robert Mapplethorpe. “A ideia é fazer pela primeira vez em Portugal uma grande exposição da obra deste grande artista do século XX. Não só focada no seu contributo como fotógrafo, mas também, particularmente, nas questões da sexualidade e do género. É um artista em que o seu trabalho mostra uma relação com a comunidade homossexual dos Estados Unidos. Morreu de sida e a sua própria vida está envolvida nesta história. Em todo o seu trabalho há essa relação contextual”, explica o actual director-adjunto do Museu de Serralves.
Serralves é heteronormativo?
No seu trabalho como curador, João Ribas preocupa-se com o facto de os museus tenderem a reproduzir “uma certa identidade artística masculina, heteronormativa”, e não serem lugares neutros. “Não faço a exposição por uma razão de quota, mas porque acho que os museus têm que fazer esse trabalho. Mapplethorpe é um artista que faz parte dessas grandes figuras da arte que Serralves se preocupa em mostrar, mas também tem essa dimensão ligada à questão da representação da comunidade homossexual. Não só pela sua própria identificação, a sua posição, mas também pela sua obra. É importante representá-la e, como curador, tenho essa ética, quero fazer isso.”
Serralves vai mostrar que na segunda metade do século XX há este artista cuja obra com “dignidade, beleza e complexidade” já reflectia uma sexualidade humana não normalizada. Na exposição, por exemplo, vão estar fotografias do famoso do X Portfolio (1978), em que Mapplethorpe explorou o mundo sadomasoquista gay.
O mundo à nossa volta, diz o curador, está longe de ter essa dimensão tão heteronormativa como, muitas vezes, vemos nos museus. “Estamos no meio de uma grande produção de novas linguagens, de novas identidades e sexualidade. Os museus têm a responsabilidade de reflectir a contemporaneidade e a história dessa revolução do género, acompanhando essa evolução.”
Exposições como a dedicada a Mapplethorpe em Serravles são uma tentativa de fazer essa reflexão. “E é por o Museu de Serralves não ser heteronormativo que faz todo o sentido fazermos uma exposição como esta. Está fundamentada na importância do artista – que tem muito para dizer e uma obra belíssima – e no facto de nunca ter tido uma retrospectiva Portugal. Claro que o artista tem esses méritos todos, mas o contexto social também nos interessa.”
O interesse de Ribas pela obra de Mapplethorpe vem de muitos lados. “Faz parte da nossa formação visual e artística. É um trabalho que encontramos quase no início do nosso interesse pela arte, pela cultura. É um artista que chega até nós talvez antes mesmo de percebermos o que é arte contemporânea. Eu já conhecia obras dele, já tinha visto obras dele, antes de saber quem era Robert Mapplethorpe.”
O primeira memória de Mapplethorpe está relacionada com o disco de estreia de Patti Smith, Horses (1975), de que o fotógrafo é autor da imagem de capa. Essa relação da fotografia de Mapplethorpe com outros meios e artistas, um dos aspectos explorados por Ribas, é possível estabelecer além da música, uma vez que os seus retratos são também um álbum das grandes figuras da arte do século XX. “Muitas das imagens de Mapplethorpe fazem parte do nosso imaginário cultural.”
A necessidade de reflectir sobre esta obra começou, no entanto, com o interesse que o curador tem na fotografia e, em particular, na fotografia contemporânea portuguesa. Com a relação que estabeleceu com certos fotógrafos da sua geração (Ribas tem 38 anos), com nomes como André Cepeda, José Pedro Cortes, André Príncipe, ou até mais novos como Nuno Vieira, em que encontrou um conjunto de influências que recua até Mapplethorpe: “A relação talvez não seja directa mas tem a ver com a grande relevância e importância da fotografia hoje na produção artística em Portugal. As obras destes artistas reflectem uma história da fotografia em relação à sexualidade, às questões sociais, às comunidades e práticas que são colocadas à margem da sociedade. A obra de Mapplethorpe tem uma enorme influência em todos estes temas e foi marcante ao afirmá-los e colocá-los no mainstream.”
Já com a fotografia de estúdio, Mapplethorpe representa hoje uma tradição que é uma “contratendência”. “Aquelas naturezas-mortas das flores, os retratos dos artistas, dele próprio, os bustos e as esculturas clássicas. É muito importante a relação que há entre os estudos da escultura clássica e os nus.” E esses nus, sublinha João Ribas, podem ser eróticos ou não, depende da interpretação: “Não podemos dizer o que é que as pessoas acham polémico ou não. Neste momento, Mapplethorpe representa uma abertura cultural e social em que essa polémica é coisa do passado. A força dessas fotografias está precisamente no facto de continuarmos à volta delas, pela sua ousadia, pela sua beleza ou pela coragem deste artista ter feito este trabalho nesta época.”
Historicamente, a polémica estabeleceu-se em redor da obra por causa da representação da homossexualidade. “Se para a cultura heteronormativa a fotografia de Mapplethorpe era quase criminal, para o artista era uma expressão de amor, de intimidade, de liberdade sexual. Essas fotografias, que foram polémicas nos anos 80, são só uma parte do trabalho do artista, ignorando as pessoas a parte mais clássica do Mapplethorpe.”
O comissário quer celebrar essa ousadia e coragem, mas também representar a obra toda, porque esta exposição é uma retrospectiva. Ao lado das flores ou dos nus eróticos, vamos poder ver as assemblages, as colagens, do início da carreira ou as polaroids íntimas dos anos 70 e 80.
Poucas provas de contacto
A investigação começou a ser feita há um ano na Fundação Robert Mapplethorpe. “Fui ao acervo da fundação e vi as obras todas. O Mapplethorpe formalizou antes de morrer o seu acervo. Deixou as imagens bem inventariadas com as referências todas. Nós conseguimos saber exactamente quando é que cada imagem foi tirada, quantas edições é que há e qual o valor que o artista deu a essa obra.” Neste processo de pesquisa, explica que teve acesso às provas de contacto do fotógrafo, “coisa que é pouco conhecida e pouco trabalhada”.
Uma das questões interessantes que essas provas de contacto mostram é que Robert Mapplethorpe disparava pouco, ou seja, parece ter as sessões bem preparadas antes de entrar no estúdio. “As provas de contacto não chegam nem a um terço das provas normais de outros grandes fotógrafos. Uma sessão fotográfica para Mapplethorpe é constituída por 15, 18, 20 imagens nas provas de contacto. Isso é uma coisa extraordinária porque são muito poucas. Há sessões com duas imagens nas provas de contacto e sabemos que não deitou nada fora porque está tudo documentado e anotado.”
Às vezes, em 18 fotografias não se consegue encontrar a prova de contacto exacta da imagem que o fotógrafo imprimiu. Mas consegue-se refazer o processo de editar, a escolha do enquadramento: “Há quase uma ideia de colagem com a sua própria obra e isso penso que também vem desses desenhos, dessas assemblages do início da carreira. Da apropriação de imagens de contextos de revistas eróticas e subculturais, que ele usava para fazer colagens e desenhos antes de trabalhar com a sua própria fotografia.”
Se quando olhamos para o seu trabalho já sentimos uma certa nostalgia, reconhece o comissário, é porque alguma das suas imagens são clássicos da arte contemporânea e criaram a nossa ideia de iconografia do século XX, como os retratos de Iggy Pop, David Hockney, Andy Warhol ou da própria Patti Simth.
Setembro será o momento de finalmente vermos Mapplethorpe em Portugal como o artista merece. Porque, como diz o comissário, são muito os que o reconhecem, mas poucos os que realmente o viram. “Apesar de ser uma figura com um trabalho importantíssimo, o seu trabalho é muito mediado. É um fotógrafo muito conhecido e pouco visto. Parte da razão pela qual a Fundação Mapplethorpe ficou muito animada com a proposta é precisamente por trazer o trabalho dele para a Portugal.”
Antes, só há memória de uma exposição individual na Galeria Luís Serpa, intitulada Black Flowers (1985), e outra na 7ª edição dos Encontros da Imagem de Braga, em 1993, que também foi mostrada no Mês da Fotografia de Lisboa.