Isto é mesmo o Quénia, não a National Geographic

A leitora Susana Vale partilha a experiência que viveu numa aldeia masai.

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Quando entramos na aldeia é impossível que a nossa costela ocidental não venha ao de cima e o cheiro pungente e o estrume de vaca por todo o lado não tomem conta dos nossos sentidos. Durante alguns segundos fico a pensar em quantas doenças ainda por descobrir andarão por ali e que, se calhar, ter ido de sandálias até uma aldeia masai no Quénia não tenha sido um dos meus momentos mais brilhantes. Dezenas de miúdos correm descalços pela aldeia atapetada de dejectos de vaca, tal qual o Magno costuma correr pela erva verde dos Alpes. As pequenas casas na aldeia circular são feitas de uma argamassa de estrume, folhas e pequenos paus e as vacas, a maior riqueza dos masai a par com os filhos, coabitam irmamente o espaço. Recupero rapidamente o discernimento e quase tenho de me beliscar para acreditar que estamos mesmo numa aldeia da tribo masai. Aquela que é muito provavelmente a tribo mais conhecida e mais fotogénica de África.

Um pouco adiante um grupo de jovens guerreiros diverte-se a praticar o adumu, também conhecida como a dança dos saltos, enquanto as raparigas da aldeia trocam sorrisos cúmplices e os observam à distância. A dança, executada ao som de cânticos hipnotizantes, não serve só como entretenimento. Saltar alto permite conseguir saltar mais facilmente as protecções de ramos espinhosas das aldeias vizinhas e assim apropriarem-se do gado naquele que é o eterno devir masai: conseguir ficar com todo o gado do mundo. E é, consequentemente, um ritual fulcral para definir quem é o líder do grupo e quem consegue mais mulheres. Saltar alto e praticar para saltar ainda mais alto torna-se, por isso, imperativo para cumprir o ciclo de mais vacas, quatro ou cinco esposas e muitos filhos.

Pergunto a Kuntai, o nosso anfitrião, como está o seu povo a viver e gerir a globalização. Encolhe os ombros e diz que não há muito mais a fazer, além de preservar o que é mesmo fundamental na cultura masai. Diz que em algumas aldeias mais próximas dos centros urbanos ou das reservas de animais muitos masai vão à escola, deixaram de extrair os dois dentes de baixo e a cartilagem do pavilhão auricular. Alguns até deixaram de usar a shuka, as exuberantes roupagens vermelhas que usam para afastar os animais selvagens na savana. Não consigo disfarçar o alívio ao ouvir que a mutilação genital feminina também está a perder terreno. Mas ali, naquela aldeia perdida no meio da savana africana, as mulheres ainda rapam totalmente as sobrancelhas, a alimentação ainda consiste basicamente em leite e sangue de vaca extraído directamente da artéria jugular das vacas, a cadência dos dias ainda se rege pelo pastoreio dos animais e busca de água e a dos anos pelo ciclo seminómada de oito anos entre o erguer e o abandonar de uma aldeia.

Sou assaltada por sentimentos contraditórios. Por um lado, a felicidade de poder testemunhar o que durante anos assisti em programas da National Geographic. Por outro, a percepção do meu egoísmo ocidental ao estilo do que se ouvia com frequência há alguns anos: “Quero ir a Cuba antes que aquilo mude”. Este “mude” trará com certeza a perda ou adaptação de muitas tradições fascinantes aos nossos olhos mas também trará água potável, educação e a redução da mortalidade infantil — que, hoje, ainda faz com que só seja dado um nome aos bebés da tribo depois do primeiro mês de vida de modo a não custar tanto quando morrem com doenças curáveis no “nosso mundo”.

Parto da aldeia com o coração cheio e com um provérbio africano a ecoar-me na mente: “Todas as manhãs em África a gazela acorda. Sabe que vai ter de correr mais rápido que o mais rápido dos leões ou morrerá. Todas as manhãs o leão acorda e sabe que vai ter de correr mais rápido que a mais lenta das gazelas ou morrerá à fome. Não importa se és um leão ou uma gazela, quando amanhece em Africa é melhor que comeces a correr.” Os Masai vão continuar a saltar e a correr pela savana a fintar leões e sei que vão conseguir retirar o melhor do chamado primeiro mundo e espero, ansiosamente, daqui a uns anos voltar lá para assistir a essa fantástica fusão de culturas.

Susana Vale
www.omundomagno.com

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