Fiscalização falhou em Tondela como falha "muitas vezes" em todo o país
As licenças são aprovadas a partir de vistorias feitas. Mas "há imprevidência, falta de cuidado e rigor", diz o engenheiro João Appleton. "Criam-se condições para situações muito perigosas."
Na tragédia deste fim-de-semana em Tondela, a primeira coisa a correr mal foi o tecto ser feito de material inflamável numa sala onde uma salamandra, que habitualmente aquece muito, funcionava numa noite muito fria. “A utilização de materiais feitos com recurso a material plástico, muitas vezes derivados do petróleo”, é “absolutamente contra-indicada em grandes espaços ou espaços utilizados por muitas pessoas”, diz o engenheiro e ex-professor universitário António Segadães Tavares.
“O desconhecimento das pessoas que criaram aquela associação recreativa é notório. Vir exigir a intervenção de um técnico especialista é ilusório. A falta de recursos financeiros ou o desconhecimento [dos materiais seguros] é apenas parte do problema.”
A segunda coisa a correr mal — e para Segadães Tavares, o problema principal — foi a impossibilidade de as pessoas saírem com facilidade. Uma e outra coisa representam, para Fernando Nunes da Silva, “erros inadmissíveis” em locais onde se juntam pessoas, como este onde funcionava a associação recreativa de Vila Nova da Rainha e onde conviviam dezenas de pessoas que jogavam às cartas ou viam um jogo de futebol na televisão. A investigação da Polícia Judiciária, que está no local, coloca à partida dois cenários possíveis: homicídio por negligência ou infracção das regras de construção.
Incumprimento em "milhares" de espaços
Segadães Tavares, especialista e projectista da recuperação do Chiado depois do incêndio de Agosto de 1988, evoca a perigosidade dos espaços públicos e de grandes dimensões, e recorda ocasiões noutros países, por exemplo em discotecas onde, deflagrado o fogo e “em pânico, as pessoas se atropelam na fuga”.
“Também nos acontecem certas coisas que pensamos que só acontecem noutros lugares”, acrescenta o urbanista Fernando Nunes da Silva. A tragédia aconteceu em Vila Nova da Rainha, mas este facilitismo nas inspecções e incumprimento das regras replicam-se "em milhares de outras associações ou espaços públicos", acredita Nunes da Silva e os restantes especialistas ouvidos. O que aconteceu é um retrato do que se passa no país, concordam.
A localização num mesmo sítio das saídas do edifício para a rua e o facto de nenhuma ter as barras de segurança obrigatórias em espaços públicos agravou a situação. Onde devia estar uma porta corta-fogo, que não abre por fora mas abre facilmente do interior, havia uma porta trancada à chave. As pessoas não puderam sair logo.
De acordo com o Regulamento de Segurança contra Incêndios de 2008, este tipo de espaços carecem obrigatoriamente de fiscalização pelos bombeiros e a entidade a quem compete fiscalizar o cumprimento das regras é a Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC).
A partir daquilo que viu e é público sobre a tragédia, o advogado António Jaime Martins coloca três cenários possíveis: o regulamento de segurança não ter sido cumprido (se não foram realizadas as inspecções obrigatórias), o dever de pedir o licenciamento para utilização pública ter sido violado (e ter sido apenas pedido o licenciamento para uso particular) e, por fim, a câmara municipal ter falhado no dever de fiscalizar se a utilização do edifício correspondia ou não à utilização prevista no licenciamento que ela própria aprovara.
Materiais restringidos mas usados
Relativamente ao material utilizado no tecto falso, o engenheiro João Appleton diz que os materiais inflamáveis já estão restringidos pelo próprio regulamento e que um controlo desses materiais perigosos já é possível ser feito. Alguns materiais inflamáveis são proibidos, outros podem ser utilizados com restrições. "As situações mais desejáveis" são as que envolvem o uso de cimento, estuque ou gesso, explica João Appleton. "Os materiais mais inadequados são muitas vezes utilizados por serem muitíssimo mais baratos. As pessoas também compram por ignorância, ou por terem a ideia de que nada vai acontecer."
O que quer que tenha sucedido, Fernando Nunes da Silva aponta “o facilitismo” com que os certificados das inspecções são passados ou as licenças aprovadas. “A câmara municipal não pode passar uma licença sem ter uma declaração de conformidade” e essa certidão depende da inspecção obrigatória dos bombeiros. O que acontece “não é esses papéis não existirem”, acredita Nunes da Silva. Nos meios pequenos, as pessoas conhecem-se, facilitam, "muitas vezes fecham os olhos", diz. "Há imprevidência, falta de cuidado e rigor", corrobora João Appleton. "E criam-se condições para situações muito perigosas."
Os engenheiros, urbanista e jurista ouvidos propõem não esquecer as eventuais falhas antes de o fogo deflagrar: na utilização inadequada de materiais inflamáveis; na forma como são feitas as inspecções da Protecção Civil e bombeiros às condições dos edifícios; no licenciamento aprovado sem eventual cumprimento das regras de segurança mínimas contra incêndios; e, por fim, na fiscalização pela câmara municipal de que o edifício está a ser utilizado para o objectivo aprovado.
“Há aqui algo que convinha esclarecer”, diz Nunes da Silva. E propõe: “Tal como nos incêndios [de Junho e Outubro] as pessoas acordaram para o que deve ser feito na floresta, devia-se agora, e em nome das vítimas que pereceram e das que ficaram feridas, utilizar o que aconteceu para se passar a ser mais rigoroso na fiscalização e no licenciamento deste tipo de espaços.”