A PGR, a ministra e o estranho parecer “de Angola”
Joana Marques Vidal deixa uma muito positiva e indelével marca no MP português e tudo aconselharia a que fosse reconduzida no cargo. Uma continuação, contudo, que me parece impossível em face do actual texto constitucional.
A actual Procuradora-Geral da República (PGR), Sra. Dra. Joana Marques Vidal, tem desempenhado, tanto quanto me é dado conhecer, de forma muito competente e irrepreensível o seu mandato. Por certo com o concurso dos demais magistrados do Ministério Público (MP) e dos órgãos de polícia criminal, que actuam, no âmbito da investigação penal, sob a dependência funcional do titular do inquérito, a actual PGR tem sido exemplo de independência e imparcialidade, com uma vontade férrea em demonstrar a autonomia do órgão encarregue do exercício da acção penal, em conformidade com os ditames do art. 219.º da Constituição e do Estatuto do Ministério Público.
Também fruto da sua resiliência, nunca como agora o poder judicial (em sentido amplo) chegou aos mais poderosos, atingindo no coração muita da chamada “criminalidade de colarinho branco”, de que vários processos em curso são prova viva. É evidente que a magistratura judicial também tem feito o que lhe compete, mas não podemos esquecer que, na arquitectura do nosso sistema jurídico-processual criminal, cabe ao MP a condução da primeira fase de inquérito, marcadamente de investigação, sem a qual não existe a eventual fase de instrução e a magna fase de julgamento. Tudo, por isso, aconselharia, a que a actual PGR fosse reconduzida no cargo. Porém, da conjugação do art. 133.º, al. m), e do art. 220.º, n.º 3, ambos da CRP, conhecendo a história das alterações ao preceito, é para mim claro que o objectivo do legislador foi o de evitar a recondução de um titular para além de um mandato que, no nosso sistema, é considerado longo: seis anos. Nesse sentido, as declarações de hoje da Sra. Ministra da Justiça, neste particular, têm toda a razão de ser. Aliás, também se não sabe – nem tem de conhecer-se – se a Sra. Dra. Joana Marques Vidal estaria na disponibilidade de continuar. Continuação que, como digo, me parece impossível em face do actual texto constitucional, bastando recordar que os seus dois antecessores também só cumpriram um mandato. A bem da rotatividade nos cargos de topo, precipitados do princípio democrático.
Simplesmente, poderá assistir-se a alguma “polémica” por via da actual situação que se vive com o processo judicial contra o ex-vice-Presidente de Angola. Algumas notas a este respeito se impõem. Em primeiro lugar, Portugal deve manter o princípio da separação e interdependência dos poderes (art. 111.º da CRP), sendo inconstitucional qualquer interferência do Governo na condução do inquérito. O parecer pedido ao Conselho Consultivo da PGR, a que não consegui ter acesso (ao que sei, não se acha publicado), visava, segundo noticia a comunicação social, saber até que ponto existia imunidade diplomática de Manuel Vicente, ou seja, dito de outro modo, se estava ou não preenchido um dos requisitos de perseguibilidade penal do então vice-Presidente de Angola. Foi noticiado o mau estar do pedido junto do MP. E com toda a razão. Embora de forma larvar, trata-se, a meu ver, de uma inadmissível tentativa de intromissão do executivo nas competências exclusivas do MP.
A coberto de uma suposta necessidade de saber como lidar diplomaticamente com o caso, o pedido foi efectuado. Mas não sejamos ingénuos: o Governo não necessitava dele para esse efeito, bastando-lhe dizer o que mais tarde afirmou – Portugal é um Estado de Direito democrático que respeita a autonomia do MP e, assim, em nada pode interferir na investigação da notícia de um eventual delito. Ao pedir este parecer, que em meu entender nem deveria ter sido emitido pelo Conselho Consultivo da PGR, com o argumento da ilegitimidade do pedido, na prática, o Governo imiscuiu-se numa competência exclusiva do MP, pois só a este compete saber se existe ou não a dita imunidade diplomática e se a mesma se mantém ainda, tendo em conta que no momento da prática dos alegados factos o suspeito desempenhava cargo político, ou se, após a cessação do mandato, tal imunidade deixou de existir, pelo que inexiste qualquer obstáculo à continuação do inquérito, o que tenho por tecnicamente mais exacto. Repare-se que no caso dos filhos do embaixador do Iraque em Portugal nenhum parecer do género foi solicitado e também aí se levantava a questão da imunidade diplomática.
Donde, fica a impressão – ao menos – da existência de dois pesos e duas medidas e a velha questão de os nossos poderes públicos recearem o poder económico angolano, apesar de enfraquecido, fruto da crise do petróleo. Pena é que a substituição – normal – da PGR, em Outubro de 2018, comece a ser preparada neste pano de fundo. Conjugação astral infeliz ou algo mais?
Certo é que a Sra. Dra. Joana Marques Vidal deixa uma muito positiva e indelével marca no MP português. Bem-haja por isso!