Leonardo da Vinci, o “homem dos sete ofícios”, também foi ecologista
Lançado por uma editora espanhola, “El Libro del Agua” reúne textos sobre temas aquáticos do famoso pintor – afinal também ecologista do século XV – Leonardo da Vinci.
Leonardo da Vinci é o perfeito exemplo do que hoje chamamos de “homem dos sete ofícios”. Conhecemo-lo sobretudo como pintor, mas também foi escritor, filósofo, arquitecto, urbanista e até cientista. E, embora nunca tenha publicado os seus estudos anatómicos, há quem considere que, se os desenhos a que dedicou os últimos anos de vida não tivessem permanecido escondidos, é bem possível que viesse a ser visto como um dos grandes cientistas da renascença e um dos grandes anatomistas de todos os tempos. Agora, sabe-se que também foi um obsessivo navegante da água em todas as suas expressões, avançou recentemente o jornal El País, chamando-lhe um ecologista do século XV. Ao que parece, deixou sete mil fólios escritos ou desenhados sobre o elemento na sua forma líquida: textos sobre temas aquáticos, incluindo previsões sobre desastres ambientais, que renascem em forma de livro, El Libro del Agua (32 euros), pelas mãos da espanhola Abada Editores.
O interesse de Leonardo da Vinci pela água é encontrado em múltiplos manuscritos, mas os especialistas apontam, de acordo com o “El País”, para sobretudo duas obras. Por um lado, o Códice F, de 1504, mantido no Instituto de França. Por outro, o Códice de Leicester, de 1508, que – hoje propriedade de Bill Gates – reúne textos e desenhos sobre uma ampla variedade de tópicos científicos. E foi Luigi Maria Arconati o primeiro a dispor-se, em 1643, a unificar os escritos de Leonardo sobre o movimento e a medida da água em Del moto e Misura dell’Acqua – afirma também o El País, que refere ainda uma obra alemã, essa mais recente, intitulada Das Wasserbuch (“O Livro da Água”, em português), publicada em 2012 pela editora alemã Schirmer und Mosel. Em Portugal, também foi feita uma compilação, pelo médico psiquiatra Orlindo Gouveia Pereira, chamada Os Tratados da Água de Leonardo da Vinci (1998), da Edições Inapa.
Este novo El Libro del Agua reúne praticamente tudo que o mestre do Renascimento escreveu sobre o tema, graças a Juan Barja e Patxi Lanceros. Os responsáveis pela edição dedicaram cerca de dois anos a estudar e a traduzir os códices (manuscritos em madeira) de Da Vinci, espalhados pelo mundo inteiro – desde o Castelo de Windsor até à Biblioteca Nacional de Espanha, passando pela Biblioteca do Vaticano, pela colecção de Bill Gates, pelo Instituto de França ou pelo Museu Britânico. “Este é um livro que nunca existiu, embora o próprio Leonardo Da Vinci falasse sobre ‘il mio libro del acqua’, daí que o que fizemos foi construí-lo. Da Vinci passou toda a sua vida a tirar notas, da direita para a esquerda e de forma muito desordenada, uma folha aqui, outra ali, e esses fragmentos estão espalhados pelo mundo”, explica Juan Barja, citado pelo El País.
Estruturado em seis capítulos, além dos escritos, o livro reúne ainda 79 reproduções de desenhos do artista, que incluem moinhos de água, canais de rios, litorais, tempestades, dilúvios, enchentes, aparelhos de hidrotecnia, projectos para quebra-mares e outros rabiscos de temática aquática – tudo executado com tintas e sanguina (lápis vermelho feito com peróxido de ferro), aguarela, lápis preto e pena, sempre sobre papel.
Depois, entre a análise dos processos que unem e separam os elementos (água, ar, terra e fogo), as distintas formas que a água pode apresentar e os projectos sobre a água com que Da Vinci sonhou, destaca-se o sexto capítulo, intitulado “Do dilúvio e outras inundações”, com diferentes considerações físicas, teológicas, literárias e pictóricas do autor – que põe por exemplo em dúvida a versão bíblica do Dilúvio. O tema do Dilúvio é, aliás, bastante frequente nos seus escritos, tendo feito várias descrições, escritas mas também desenhadas, e tentado descrever os efeitos prejudiciais das cheias e das inundações.
Tanto Juan Barja como Patxi Lanceros consideram que Leonardo da Vinci tinha “uma certa ideia ecológica do fim do mundo”, que se apresenta “assombrosa” em textos de “carácter premonitório”. Referem, por exemplo, a ideia do fluxo da água serem as veias do mundo: “E que o mundo, contrariamente ao que disse Aristóteles, não será eterno, e sim que terminará, e que o fará pelo esgotamento da água.” Mas também, e em particular, um texto, incluído no “Códice de Arundel”, do Museu Britânico (1504-1516), que foi usado como epílogo e em que Leonardo prevê: “E os rios perderão as suas águas, e a frutífera terra não conseguirá gerar de si nenhum broto, e não crescerá sobre os campos a inclinada beleza da espiga; e assim morrerão os animais, não podendo nutrir-se com as frescas ervas dos prados; (…) e os homens, depois de múltiplas tentativas, de igual forma perderão a vida, morrendo por fim a espécie humana. E a terra fértil, rica em frutos, será transformada num deserto…”
Das veias do planeta até às nuvens
As “visões” de Leonardo são tema recorrente noutras obras sobre o humanista, como uma biografia de 1998 de Carlo Vecce (publicada em Portugal pela Editorial Verbo em 2005), que refere outro códice, o Códice Atlântico, onde é descrito um monstro marinho (“Ó quantos povos correm aos nossos lidos para te ver, quando horrível apareceste debaixo das ondas do cheio e grande oceano!”). E, na biografia Leonardo da Vinci, Carlo Vecce dá também conta de um fólio que representaria o começo do “tratado da água”, onde Da Vinci compara o sangue no corpo humano à água no corpo da Terra, invocando “infinitas veias de água” e descrevendo o resto do corpo feito de ossos que são pedras e cartilagens que são tufos. Sendo a Terra, portanto, um ser vivo gigante que, estando nós a destruir, nos pode engolir ou sucumbir connosco.
O seu interesse e preocupação pela natureza manifestam-se, portanto, em muitos dos seus escritos – onde se podem encontrar referências a conchas e corais desgastados, a grandes fenómenos atmosféricos, como os efeitos da rarefacção do ar e dos processos meteorológicos que também aborda no Códice de Leicester até à força incontrolável das águas e a uma série de estudos fluviais, por exemplo. Além disso, também esboçou desenhos para um equipamento de respiração submarina e máquinas para bombear água para torres, bem como compôs um Livro das Chuvas, no qual escreveu sobre o papel das nuvens, como se formavam, como produziam chuva e o efeito desta sobre o ambiente.
Leonardo da Vinci – que até chegou a versar sobre o retrocesso dos oceanos e como os níveis de água do planeta continuavam a diminuir – aparece, assim, também como um ecologista. E num tempo em que se discute o futuro dos oceanos, mas também o futuro da Terra e dos que nela habitam, pairando a ameaça do Antropoceno, talvez possamos aprender algo com um “génio” do século XV.
Texto editado por Teresa Firmino