“Mais do que Jerusalém precisa deles, eles precisam de Jerusalém”

A única cidade que viveu duas vezes pertence a demasiados crentes para ser capital do Estado que nasceu no lugar das antigas tribos israelitas para ali acolher a diáspora judaica. Netanyahu discorda, mas até David pertence a todos.

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A Cidade Velha de Jerusalém

“Jerusalém tem sido o foco das nossas esperanças, sonhos e preces por três milénios. Jerusalém tem sido a capital do povo judeu por 3000 anos”

Benjamin Netanyahu, 6 de Dezembro, Twitter

 

“Enquanto centro político, Jerusalém só foi capital desde os dias do Rei David, há 3000 anos. Outras nações controlaram-na, nenhuma fez dela a sua capital”

Benjamin Netanyahu, 10 de Dezembro, Conselho de Ministros

 

Porta de Jaffa, a Torre de David, à direita e a Cidade Velha começa a antecipar-se aos nossos pés. É impossível que uma visita a Jerusalém não passe por aqui e muitos terão percorrido estes passos na sua primeira incursão dentro de muralhas. Uma espécie de largo e mais abaixo o início das escadas, sempre escadas, ruas estreitas a descer, sempre a descer.

Uns dias dentro de muralhas e é ver quem mais desce as escadas a diferentes dias da semana ou horas do dia. Por aqui quem mais desce são os judeus, vêm de Jerusalém Ocidental; de noite, grandes famílias de ortodoxos passam como pássaros para quem chegou a Primavera, o momento em que têm de voar até determinado jardim ou lugar. Aqui é um templo, a memória de um templo, um muro, o Muro das Lamentações.

Os mesmos degraus são percorridos a diferentes horas por cristãos, religiosos ortodoxos com as suas vestes negras compridas a sobrarem atrás de si. Também descem em direcção a memórias, neste caso para depois subir, começam perto da Porta dos Leões, em pleno bairro muçulmano, percorrendo em seguida a Via Dolorosa, as 14 estações da Via Sacra entre ruelas até à igreja do Santo Sepulcro, nos passos de Jesus.

Jerusalém é memória e é vida. Em 1947, o Plano de Partição das Nações Unidas para dividir a Palestina histórica entre estados árabes e judeus deixou Jerusalém com um estatuto especial, fundamentado na importância religiosa da cidade para as três religiões abraâmicas. O mapa da partição do que era então o Mandato Britânico da Palestina colocava Jerusalém dentro de um futuro Estado Palestiniano, mas a cidade foi designada, como Belém, corpus separatum.

No ano seguinte, quando a ONU reconhece o Estado de Israel, a Resolução 194 (III) da Assembleia Geral declara Jerusalém uma cidade aberta, internacional.

“É altura de reconhecer oficialmente Jerusalém como capital de Israel”, afirmou, a 6 de Dezembro, o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, explicando não estar a fazer “nem mais nem menos do que o reconhecimento da realidade”. Vai seguir-se a preparação da mudança da embaixada dos EUA de Telavive para a Cidade Santa, centro de culto das religiões monoteístas, “a única cidade que existiu duas vezes – no céu e na terra” (Jerusalem – The Biography, Simon Sebag Montefiore, 2011).

Reconhecer a realidade como ela é. Em Jerusalém, é verdade, a lei é a de Israel. E apesar disso, os palestinianos que ali vivem, uns 420 mil em Jerusalém Oriental, não têm cidadania israelita, antes uma autorização de “residência permanente” que na verdade se pode perder com facilidade.

Jerusalém há 3000 anos, Jerusalém hoje. David, unificador das tribos judaicas e o seu primeiro monarca, o primeiro a fazer de Jerusalém capital, a personagem mais descrita no Velho Testamento e a mais vezes referida na Bíblia, a par de Jesus, um dos principais profetas que o islão acredita ter sido enviado por Deus para guiar os israelitas.

“Jerusalém só foi capital desde os dias do Rei David, há 3000 anos”, afirmou o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, pouco depois da proclamação de Trump. É verdade, Jerusalém nunca foi capital de outros. Tanto como é verdade que embora David seja central na narrativa do judaísmo, é uma figura venerada por tantas religiões como as que têm em Jerusalém a sua Cidade Santa.

Património e pessoas

O poeta israelita Yehuda Amichai tem uma série de poemas sobre Jerusalém. Em Turistas, está sentado junto à Torre de David com dois grandes sacos de compras e dá com um guia turístico a usá-lo como ponto de referência. “Vêem aquele arco do período romano? Não é importante: mas junto a ele, à esquerda e um pouco abaixo, senta-se um homem que comprou fruta e vegetais para a sua família”.

Yehuda Amichai partilha a mesma memória evocada por Netanyahu, que diz construir em Jerusalém “por ser este o nosso direito natural”. Mas para Amichai, o mais importante não é o museu do passado, a memória inscrita nos genes de um povo que fugiu uma e outra vez até voltar a casa. Importante é a forma como todo este passado, em memórias ou monumentos, se liga às relações humanas do presente, do agora.

A existência de David é hoje quase unanimemente aceite. Mas tanto os sábios do Talmude como os da Bíblia tentaram rapidamente torná-lo num santo bem diferente da crueza das descrições dos livros de Samuel, I e II, e do Velho Testamento. Um pastor que cresce para se tornar num homem sedento de poder, capaz de mentir, roubar ou matar.

Exército de mortos

Afinal, mesmo nos seus primeiros tempos como capital, 1000 a.C., Jerusalém já era palco das batalhas fratricidas, massacres e catástrofes que viriam a marcar a sua história. O Primeiro Templo, ou Templo de Salomão, construído pelo filho de David, será completamente destruído por Nabucodonosor II da Babilónia, do segundo sobrará o Muro das Lamentações. Tantas desgraças ali se abateram que Melville chamou à cidade um “crânio” cercado por “exércitos de mortos”, recorda o historiador britânico Simon Sebag Montefiore.

Por algum motivo serão cemitérios que rodeiam a Cidade Velha e dentro desta tantas casas são construídos em redor de campas. “Nada torna um lugar mais sagrado do que a competição de outra religião”, escreve Montefiore. Jerusalém, a adorada, sabe-o bem.

A invocação de David e os 3000 anos de pertença, “o direito natural” a que se refere Netanyahu tem fundamentos. Mas os lugares evoluem através de quem os habita, das relações entre as pessoas dos poemas de Amichai. Esqueçamos o presente. Há 100 anos este mês, o general britânico Edmund Allenby conquistou Jerusalém aos otomanos e entrou na Cidade Velha a pé, pela Porta de Jaffa.

“Para os britânicos é que Jerusalém era tão importante – eles é que a estabeleceram como capital”, diz, citado pelo jornal The New York Times, Yehoshua Ben-Arieh, geógrafo histórico da Universidade Hebraica. 

Na verdade, entre a fundação do Estado de Israel e a Guerra dos Seis Dias, a liderança israelita aceitava o controlo internacional de Jerusalém. Aliás, a cidade simbolizava “uma regressão à cultura conservadora” de que os primeiros sionistas tentavam fugir (Michael Dumper, professor de Política da Médio Oriente, Universidade de Exeter, Inglaterra). “Telavive era a nova cidade brilhante no cimo da colina, a epítome da modernidade”.

O novo culto

Nas últimas décadas, a direita israelita esforçou-se por um regresso a esse conservadorismo. A vitória do Likud, em 1977, contribuiu para solidificar Jerusalém como parte da identidade de Israel. “Tornou-se no centro de uma devoção de tipo culto que nunca tinha existido”, diz Rashid Khalidi, professor de Estudos Árabes Modernos em Columbia. Em 1980, o Parlamento israelita declarava que “Jerusalém completa e unificada é a capital de Israel”.

Num artigo escrito na New Yorker depois do abandono da UNESCO por parte de Israel, Bernard Avishai começa por citar George Orwell – “quem controla o passado controla o futuro”. Avishai, professor na Universidade Hebraica de Jerusalém, a viver entre a cidade e os EUA, conta que a primeira vez que viu o Muro das Lamentações, semanas depois da Guerra de 1967, “este era em grande parte um lugar de peregrinação secular”.

Controlar o presente

Entretanto, “as coligações de direita já controlam o presente da nação há tanto tempo que em breve será fútil procurar um passado que não tenham planeado e forçado”. Nada o mostra como “a promoção de Jerusalém como centro sagrado da experiência judaica”. Nas escolas ortodoxas da infância de Avishai, “o ‘lugar mais sagrado’ do judaísmo encontrava-se no comovente toque da mão do autor dos cânticos sobre as palavras da Tora”.

Entrando pela Porta dos Leões, de Herodes ou de Damasco, caminhando em direcção à entrada do Pátio das Mesquitas, um turista será barrado por militares israelitas se tentar entrar quando os muçulmanos ali se reúnem para as suas principais orações. A História costuma ser a dos vencedores. Mas declarar que uma coisa é uma coisa, uma capital é uma capital ou um país é um país não chega para que assim seja.  

Para o professor Ben-Arieh, o conflito em torno de Jerusalém está para durar. A cidade era “santa para as três religiões, mas no momento em que, na terra de Israel, duas nações cresceram – o povo judeu e o povo árabe local – ambos abraçaram Jerusalém”. Agora, afirma, “mais do que Jerusalém precisa deles, eles precisam de Jerusalém”.

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