Já não há heróis acidentais na BD de Melo e Cavia
Arrumada a saga de Dog Mendonça e Pizzaboy, Filipe Melo e Juan Cavia aventuraram-se por uma banda desenhada em que o espectacular cede terreno para a ambiguidade. Depois de Os Vampiros, Comer / Beber, em apresentação na Comic Con, convida a um tom mais íntimo.
De início era o cinema. Ou melhor, a frustração de não conseguir fazer cinema. As Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy (Incríveis, Extraordinárias e Fantásticas, de acordo com cada um dos três tomos) tinham sido, antes de mais, guião para impossíveis filmes de espectacularidade cinematográfica, carregados de efeitos especiais de encher qualquer olho adolescente e feitos de um heroísmo de protagonistas improváveis, tipos de mau feitio, ar de poucos amigos, relação desconfiada com o mundo e cujo compromisso a contragosto de salvar o planeta se confundia sempre com a satisfação egoísta dos mais comezinhos caprichos pessoais. À semelhança, portanto, de filmes como Big Trouble in Little China (traduzido, inventivamente, como As Aventuras de Jack Burton nas Garras do Mandarim), com um Kurt Russell de camisola de alças e competente mullet a esbanjar displicência e heroísmo acidental.
Foram três volumes de banda desenhada que Filipe Melo escreveu e trabalhou em parceria com os argentinos Juan Cavia e Santiago Villa. E foram três porque Melo queria desafiar a maldição das terceiras obras em cada saga de contornos épicos – o terceiro capítulo parece estar sempre fadado ao mais desonroso desastre. Apesar do enorme sucesso para o modesto mercado da BD portuguesa, e das pequenas histórias encomendadas pela gigante norte-americana Dark Horse Comics, o ciclo cumpriu-se e ficou fechado de vez. “Hoje em dia já não conseguiria fazer algo como o Dog Mendonça com a mesma convicção”, reconhece Filipe Melo. “Sinto que estamos mais velhos, no melhor dos sentidos. E, de repente, começamos a perceber que as nossas vidas são isto, vidas pequenas, em que a grande recompensa que encontro é mesmo nas relações com as pessoas e na observação como reagem a determinadas situações.”
Daí que depois de ter realizado uma curta-metragem de terror em 2003 (I’ll See You in My Dreams) e escalado na popularidade da trilogia de Dog Mendonça e Pizzaboy, a parceria com Juan Cavia tenha tomado um rumo bastante distinto com a publicação de Os Vampiros, em 2005. De um momento para o outro, desabava a monumentalidade e adentravam num tom mais pessoal e fortemente ancorado na realidade, a partir da exploração de uma ideia que começara por ser pensada como história de terror, de zombies e afins, e se converteu numa intensa e fulgurante narrativa em torno da Guerra Colonial. Era um corte abrupto com os resquícios de adolescência tardia abundantes na série anterior e um mergulho desamparado e emocional num dos episódios mais traumáticos da História recente portuguesa.
Depois de Os Vampiros era impossível voltar atrás. E quando Carlos Vaz Marques, coordenador da revista literária Granta Portugal, convidou Melo e Cavia a participarem com uma história no número temático Comer / Beber, os heroísmos de ambição desmedida e os lobisomens de Tondela já tinham sido enfiados na gaveta para, muito possivelmente, não mais saírem de lá. Agora, a haver actos heróicos, surgem imersos em tanta ambiguidade e são tão pouco claros que se aproximam, afinal, da vida tal como a vivemos – e não como a sonhamos ou imaginamos. Não há gestos magnânimos, mas decisões turvas, contraditórias – capazes, no limite, de providenciar uma salvação pessoal, mas também de não gerar nada, não produzir sobressaltos no movimento de rotação da Terra, nem de alterar o estado do mundo na mais ínfima escala.
Talvez, precisamente, porque tanto em Os Vampiros como agora em Majowski, a primeira das duas curtas histórias de Comer / Beber – com apresentação sábado na Comic Con, Porto, e Fnac Chiado, Lisboa, segunda –, Filipe e Juan estão a sujar as mãos de realidade – e a realidade tem, com frequência, o dom de perder a clareza. Foi no relato de uma amiga (Nádia Schilling) acerca do episódio familiar em que o seu bisavô, no dia da invasão nazi da Polónia, correu a esconder a melhor garrafa de champanhe que guardava no restaurante, que Melo pensou de imediato assim que chegou o convite da Granta. Depois foi preciso convencer a amiga a autorizar que a história saísse do reduto familiar e pudesse chegar à casa de desconhecidos.
O impacto de Majowski prende-se precisamente com a ausência de moral clara. Não há lições óbvias, embora não faltem sentidos e simbolismos a extrair daquilo que se conta em menos de 30 páginas. De início, quando recebeu os dois guiões, o desenhador argentino ligou-se mais a Sleepwalk, investida num certo imaginário de road movie em que o protagonista atravessa vários estados norte-americanos para chegar à afamada tarte de maçã de Dolores Turk – só mais tarde os motivos serão explicados de forma parcial. “A estrutura é mais linear e há um desenlace do qual se poderia sacar uma conclusão mais clara”, diz Cavia, que não sucumbiu de imediato aos encantos de Majowski. Acontece que, nos dias seguintes, eram as interrogações sobre aquela narrativa que o inquietavam e se recusavam a dar-lhe descanso.
Disparadores de memória
Não só o facto de a realidade se infiltrar em Majowski ajuda a explicar esta relação menos imediata, mas porventura mais sedutora com as histórias que Filipe Melo e Juan Cavia têm vindo a desencobrir. É também o próprio mistério que desperta nos dois criadores, tão intrigados quanto os leitores sobre o que move aquelas personagens, ariscas q.b., que se furtam a definições inequívocas e instantâneas. O final de ambas as propostas não é conclusivo, não há uma compensação evidente para o leitor. “Se calhar fica na cabeça uma sensação mais emocional”, admite Filipe Melo, “mas que obriga a descodificar um bocadinho mais a mensagem – gosto disso e, no futuro, gostava de ir mais por aí [está já em curso um novo livro imaginado a partir da sugestiva capa do disco Le Poète du Piano, de Samson François].” E cita The Master, filme de Paul Thomas Anderson, como exemplo dessa reserva em entregar os pontos todos ao seu público, deixando-lhe a tarefa de descobrir o que fazer e que sentido dar à história que lhe é atirada para o colo. “O The Master pareceu-me bastante mais interessante do que a grande maioria das coisas que tenho visto”, explica. “Não se sabe muito bem o que se acabou de ver, tem de se ficar a processar.”
Juan Cavia alinha numa posição semelhante, uma assunção de risco, de “não querer ficar bem com deus e com o diabo”, sabendo que os leitores mais acérrimos de Dog Mendonça e Pizzaboy poderão não se sentir preenchidos pela ausência de um final limpo, sem pontas soltas. Mas as expectativas começam a ser geridas logo a partir do formato do livro. Comer / Beber é bem mais pequeno do que as obras anteriores da dupla, ameaça passar despercebido nos escaparates das livrarias, mas alerta de imediato o leitor para a necessidade de enfiar a cabeça mais dentro das páginas, de ter de se deixar sugar pelas histórias e assinar um pacto de intimidade que está a anos-luz da saga de Dog Mendonça. A capa, com a imagem de uma típica bomba gasolina do interior norte-americano, plantada no meio do nada, parece dizer com todas as letras: ‘aqui não há nem explosões nem um mundo à beira do abismo’.
As regras ficam, portanto, estabelecidas desde o primeiro contacto. Comer / Beber é invadido por aquilo que há de vulgar e mundano nos nossos dias, embora seja atravessado, em ambas das histórias, por um último reduto de humanidade e dignidade perante as situações mais adversas – que tanto podem ter origem em episódios devastadores na História mundial como nos pequenos dramas pessoais. Se bem que em Majowski não custa descortinar um desarmante choque entre o destino individual daquele dono de restaurante e o destino colectivo – a forma como à desgraça de um pode corresponder a felicidade de muitos.
Novidade para ambos foi a surpresa de que, já depois de o livro estar entregue e em produção, Nádia Schilling ter descoberto um pormenor que poderia mudar toda a narrativa. Filipe Melo ainda ficou um pouco atormentado pela descoberta de um filho do verdadeiro Majowski que morrera durante a guerra, facto que teria consequências óbvias no primeiro conto de Comer / Beber. Mas a verdade é que o guião foi construído a partir de uma carta de Beatrice Schilling, mãe de Nádia, que omitia esse dado factual. Algo que, ao mesmo tempo, liberta a história para o mais autêntico terreno da realidade, em que há sempre segredos e detalhes que, muitas vezes, não chegam a ser destapados.
Só que essa é também a virtude natural da fixação de cada história – trazê-la a discussão, levar ao apontar de correcções e descobrir-se, afinal, mais do que se sabia à partida. Até porque o que realmente interessava a Filipe Melo nestes dois contos era explorara a ideia de como uma bebida ou uma comida podem disparar uma série de memórias. Acontece que estava a pensar nas memórias tanto das personagens quanto dos leitores. Ignorava que pudesse fazê-lo com os detentores de uma história com certificado de autenticidade.