Visita pelas lojas que vemos todos os dias e em que nunca entramos
“Há coisas que ainda temos e que não sabemos se vamos ter daqui a uns tempos, por isso vamos lá conhecê-las”. Apanhámos boleia de uma visita guiada pela voz de Manuel de Sousa, historiador e autor do Porto D’Honra, às lojas com tradição do Porto que nesta altura se vestem para o Natal.
Há seis meses que Miguel Carneiro — o alfarrabista que não partilha o apelido com a livraria que viu passar cinco gerações da sua família, a Moreira da Costa — está a vender todos os livros a metade do preço marcado. Diz que é um presente para os seus leitores nos 115 anos da “mais antiga livraria da cidade do Porto”, que em 1902 abriu portas a cerca de 50 metros de onde agora pode ser visitada, no número 30 da Rua de Avis. Nas últimas semanas, esta porta que se abre para um pequeno átrio e umas catacumbas revestidas de livros e fechadas ao público, é a única do prédio na Praça Filipa de Lencastre que ainda serve o seu propósito.
As outras fecharam-se e estão escondidas atrás de uma barreira de andaimes e gruas para as obras de restauro profundas do Hotel Infante de Sagres (no valor de 7,5 milhões de euros), que se espera que reabra em 2018, com novos espaços. Um deles estava pensado para onde agora está a livraria e foi por isso que o The Fladgate Partnership, o grupo que em 2016 comprou o hotel, já com ideias de o renovar, contestou o processo de reconhecimento da Moreira da Costa no programa Porto de Tradição, da Câmara do Porto.
A autarquia disse ao PÚBLICO que recebeu a reclamação durante os 20 dias de período mandatário de consulta pública e que o processo de reconhecimento como “estabelecimento de interesse histórico e cultural ou social local ainda está em fase de análise”.
Os donos do hotel disseram esta semana que gostariam que a Moreira da Costa saísse “até ao final do ano”. O PÚBLICO não conseguiu entrar em contacto, em tempo útil, com Adrian Bridge,o director do grupo que disse ao Jornal de Notícias que teme que os livros que o alfarrabista guarda na cave sejam “material inflamável”. Já Miguel Carneiro, trisneto do fundador da livraria, preferiu “não comentar a situação”.
Actualmente, segundo números da câmara, existem 36 estabelecimentos reconhecidos pelo Porto de Tradição. Na próxima reunião do executivo, terça-feira, deverá ser apresentada uma proposta que visa reconhecer, com efeito imediato, a Casa Soleiro, as Galerias da Vandoma e Lopo Xavier & Companhia Lda., que, tal como a Moreira da Costa, também tinham sido alvo de oposições pelos proprietários dos respectivos prédios.
Estes três estabelecimentos poderiam ter entrado na lista de lojas tradicionais que o PÚBLICO visitou numa manhã de sábado, guiado pelo historiador Manuel de Sousa, 52 anos. “Para a visita guiada escolhi 21 localizações. Algumas porque têm o selo Porto de Tradição, outras porque mesmo sem o ter acrescentam valor e variedade à cidade”, diz-nos, na mesa do Café que foi baptizado como Âncora Douro mas que é conhecido pela alcunha, o Piolho, uma das paragens do percurso organizado pela empresa turística Gbliss. Os outros estabelecimentos de comércio tradicional por onde haveríamos de passar (e entrar) serviriam de embalo à narrativa que o autor do Porto d’Honra, um livro sobre “histórias pouco conhecidas da cidade”, nos contava ao ouvido, através de auscultadores, durante as mais de três horas de percurso pela baixa da cidade onde nasceu.
Os cinquenta participantes no passeio desta manhã poderiam bem passar por turistas, de máquinas fotográficas ao peito, mas falavam todos português e, na sua maioria, viviam ou trabalhavam nos arredores do Porto. “Antes de começar pelos turistas, temos que começar por casa. Há coisas que ainda temos e que não sabemos se vamos ter daqui a uns tempos, por isso vamos lá conhecê-las”, diz o historiador, em jeito de tiro de partida. A próxima visita, ainda com os estabelecimentos decorados a rigor para a época do Natal, realiza-se no sábado, 16 de Dezembro e já está esgotada. A empresa vai por isso abrir inscrições para uma terceira ronda, a 6 de Janeiro, dia de Reis, em que, nas montras, o pão-de-ló sai da frente do bolo-rei.
“Vivi num tempo em que para fazer qualquer coisa era preciso ir à baixa, às várias lojinhas. E vi a mudança”, diz. “Com o aparecimento dos shoppings, as pessoas começaram a viver em cápsulas. Passam do ponto A para o ponto B sem olhar em redor. Saem de apartamento, entram no elevador do prédio, entram no carro, estacionam no parque do centro comercial, sobem as escadas rolantes e pronto”, ri-se, fazendo passar o exagero. “Ora, é um completo desperdício termos uma cidade com 2700 anos de história e acharmos melhor enfiar-nos num shopping”.
É essa também a primeira coisa que quem está atrás do balcão nos diz, tenha 91 anos, como Fernando Brás, do Cafézeiro, que pouco mais se lembra de ter feito, tenha 25 anos, como Maria Loureiro, que de manhã trabalha na Favorita do Bolhão e à tarde faz o estágio para a Ordem de Advogados. “Quase toda a gente que aqui vem entra bem-disposta”, anuncia, sorriso aberto e riso fácil.
Desde 1934, tal qual diz na fachada, que “a Favorita continua praticamente igual desde o dia em que foi inaugurada”, diz neta do proprietário da “Favorita”, Valentim Loureiro, de costas para uma montra onde figos, cortados a meio, abrem a boca para receber nozes e outros frutos secos, “o produto mais vendido, sempre a granel”. “Vêm muitos turistas, sim, mas é exactamente por isto ainda parecer uma mercearia local. Dizem que o espaço é lindo, gostam de ver o moinho ao fundo da loja e ficam contentes por não o termos alterado. Mas eles vão embora e nós criamos uma ligação muito forte com os nossos clientes habituais”, diz.
Quando perguntamos se o mesmo se passa numas ruas acima, no Cafezeiro, na Rua Augusto Rosa, na Batalha, a resposta chega sem palavras. Primeiro com a entrada de uma cliente, apressada, que nem precisa de fazer o pedido para ser servida. “Café moidinho na hora”, ouve-se, por cima do som dos grãos a serem desfeitos. E a seguir num álbum que é pousado no balcão, repleto de postais com fotografias de turistas que vieram, compraram e, depois de deixar Portugal, enviam pelo correio uma fotografia, ou uma mensagem. E quando chegam, são imediatamente catalogados. “Se quisermos ir à Alemanha temos aqui este envelope com tudo o que precisamos”, dizem.
À saída, depois de algumas promessas de envio de fotografias, chega o comentário que o historiador mais diz ouvir: “tantas vezes que passo aqui à porta e nem uma entrei”. Ia-se repetir, na mesma voz, à porta do Bazar Paris, da Casa Crocodilo, da Bernardino Francisco Guimarães, agora encurtada para BFG. “E esta já está cá desde 1900, por isso não deve ter sido por falta de tempo!”, ri-se, ao entrar na antiga loja de ferragens que foi ampliada para as traseiras e ocupa uma área bastante superior à média do comércio tradicional da cidade.
Saiu o armazém do material importado da Alemanha e Alexandra Oliveira, a neta do fundador, que emprestou o nome à loja, pôs a descoberto em Setembro, um “recanto soalheiro”, o Pátio Bonjardim. Lá vende “coisas menos duras de roer”, que é como quem diz, bolos e refeições ligeiras feitas a partir de receitas da família que é proprietária de todo o edifício, inclusive a parte superior, de habitação.
“A cafetaria veio modernizar a loja e é quase o culminar de um processo”, já que a loja agora vende também móveis em segunda mão e peças de decoração, explica Alexandra Oliveira. “O comércio tradicional tem de se ajustar à realidade de hoje em dia. Não podemos parar, não podemos ficar de braços cruzados a queixarmo-nos. Temos que ver o que as pessoas procuram e gostam, não destruir o que está feito, não deitar fora a história e tradição. Uma loja centenária não se deita abaixo para fazer tudo de novo”, conclui.
Sobre os efeitos do turismo, um dos temas que mais perguntas suscitou durante a visita, Manuel de Sousa considera que é tempo de “parar, ver o que ainda existe e ponderar sobre o tipo de cidade que queremos vender a quem visita”. O caminho? “Não podemos parar no tempo, mas também não podemos perder a alma – e isso é a parte difícil”, garante. “Isto é óbvio, mas pensem nisto: os turistas só vêm cá porque temos coisas que eles não têm lá. E como nós não temos um grande marco que nos distinga, temos que saber usar e preservar o conjunto”.
“Por falar em turistas”, continua, a visita guiada termina mesmo em frente à Livraria Lello, a única em todo o mundo em que se paga para entrar (4 euros) e que diz ser “o ponto mais visitado da cidade” – Manuel de Sousa, além de historiador e autor, é também o director de comunicação da livraria que, ao contrário da Moreira da Costa, já tinha sido visitada por todos os participantes. Talvez por isso o historiador pouco tenha falado. Ficou-se quase por dizer que, os irmãos Lello acreditavam “que os livros deveriam ser o motor do desenvolvimento do país”. “Loucos, não?”.