Crónica de uma amizade fixe com Mário Soares

Onze meses depois da morte de Soares, um amigo de três décadas, Vítor Ramalho, dedica um livro ao antigo Presidente da República que é apresentado no auditório da UCCLA.

Mário Soares a trabalhar
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Mário Soares a trabalhar xx desconhecido
Imagem do fotógrafo oficial Alfredo Cunha
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Imagem do fotógrafo oficial Alfredo Cunha alfredo cunha
Soares foi primeiro-ministro e Presidente da República
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Soares foi primeiro-ministro e Presidente da República FERNANDO VELUDO
Mário Soares morreu a 7 de Janeiro de 2017
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Mário Soares morreu a 7 de Janeiro de 2017 Nelson Garrido
Na última batalha política de Soares. Ramalho esteve com ele a apoiar Sampaio da Nóvoa na corrida a Belém
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Na última batalha política de Soares. Ramalho esteve com ele a apoiar Sampaio da Nóvoa na corrida a Belém NFS - Nuno Ferreira Santos

Neste 5 de Dezembro, dois dias antes de se assinalarem 93 anos passados sobre o nascimento de Mário Soares, as livrarias portuguesas terão à venda mais um livro sobre um dos pais da democracia portuguesa. Desta vez, é um livro-crónica, escrito em tom intimista pelo socialista Vítor Ramalho. Crónica de uma amizade fixe dedica 205 páginas ao ex-primeiro-ministro e Presidente da República que iniciou Vítor Ramalho nas lides da política e do Governo.

“Esta crónica é resultado de uma relação política de 30 anos com Mário Soares que deu lugar a uma amizade muito fixe, estendendo-se naturalmente à sua mulher, Maria Barroso, que foi sua companheira durante 67 anos”, explica Ramalho no prefácio da obra. “Num mundo crescentemente hedonista e incerto, não poderia deixar de assinalar a passagem de mais um dos seus aniversários sem esta singela e merecida homenagem”.

Vítor Ramalho foi membro do IX Governo Constitucional, o chamado Bloco Central, de Mário Soares, e mais tarde integrou a Casa Civil do Presidente da República como seu consultor. Foi também secretário de Estado adjunto do ministro da Economia, no executivo de António Guterres, e deputado. É do cruzamento desses momentos com a amizade que desenvolveu com Mário Soares que trata o livro, revelando alguns momentos até agora reservados na memória dos intervenientes e outros, hilariantes, que fazem parte da memória colectiva.

Como a descrição, logo na página 15, de uma das conversas que Mário Soares tinha com o corpo de enfermagem destacado para lhe dar apoio, em casa, numa fase já avançada da velhice. “Riram-se muito e vieram à baila algumas dezenas de outras estórias vividas pelo meu amigo”, descreve Ramalho. “Como aquela em que vê um bando de crianças a correrem na sua direcção, gritando: ‘Olha, o bochechas!’. Quando pega numa delas ao colo, rapidamente a põe de novo no chão, voltando-se para o ajudante de campo: ‘Este tem barba!’. Era um anão”.

Ainda o leitor não conseguiu parar de rir ao imaginar Soares a pegar num anão ao colo e já Ramalho está a lembrar outra história célebre, em que o político “e vários camaradas foram parar à esquadra da polícia do Alto de São João”, em Lisboa, depois de no cemitério da zona promoverem uma homenagem a um velho republicano. “Quando a família soube que estava na esquadra, o tio Nobre prontificou-se a ir correr fazer a entrega ao sobrinho de uma bomba para a asma”. O problema é que entrou nas instalações policiais a gritar: “ Mário, toma a bomba que te esqueceste dela”.

Mais à frente, na página 128, é recuperada a rápida passagem pelas Ilhas Galápagos. “Com a curiosidade aguçada, perguntou se naquele local podia dar um mergulho. Face à resposta, não hesitou. Previdente, levara os calções de banho vestidos e afoitou-se (…). Logo após o mergulho, gritou: ‘O que é isto? Tirem-me daqui!’ O cicerone não havia mencionado que naquele local os golfinhos se passeavam tranquilos e quando Mário Soares mergulhou apareceram logo a rodeá-lo.”

A crónica de Vítor Ramalho não é toda para dar gargalhadas. Na página 89, o socialista conta como chegou a secretário de Estado do Bloco Central. “Será o único não-membro do PSD na equipa do Ministério do Trabalho”, disse-lhe Soares, dando sinais de que ocuparia um cargo fundamental para o PS. “Eu balbuciei: Mas sabe, senhor primeiro-ministro, eu nunca me senti atraído por funções governativas”, respondeu Ramalho. A indecisão só aparentemente convenceu Soares porque a verdade é que quando Vítor Ramalho chegou a casa, já os seus familiares sabiam da “promoção”: “Ouvi na televisão a abrir o telejornal”, contaram-lhe. Estava feito governante, mesmo sem ter dito que aceitava sê-lo. Não levou a mal o estratagema e, anos mais tarde, conta no livro, foi com Mário Soares que se foi aconselhar sobre se deveria ou não entrar no Governo de António Guterres.

O livro de Vítor Ramalho é uma crónica cheia de detalhes que dão a conhecer a intimidade de Soares. Que outra coisa chamar à descrição de hábitos como o de fazer deslizar dos sapatos para debaixo da escrivaninha. “Um dos seus fotógrafos oficiais, quando foi Presidente da República, retratou-o até à secretária com o sapato solto de um dos pés”, lê-se na página 138. Ou a dificuldade em lidar com tecnologias, como a televisão. “Era bem conhecida a falta de habilidade dele para manipular qualquer equipamento, por mais simples que fosse, desde o telemóvel, que só tardiamente passou a usar, até ao próprio televisor. Era por isso Maria Barroso quem, quase sempre, ligava a televisão”, conta Ramalho.

O orçamento do queijo limiano, a última campanha para Belém e o envolvimento nas presidenciais de 2016, ganhas por Marcelo Rebelo de Sousa, são assuntos políticos tratados no livro que termina assim: “Não leve a mal, mas agora tenho mesmo de me ir embora. Não quero que me veja chorar, porque grande, mesmo grande, é o senhor. Obrigado mais uma vez – por todos nós. O senhor foi sempre mesmo muito fixe”.

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