Belmiro, o filantropo
A criação do PÚBLICO segue a nobre tradição dos grandes mecenas: devolver à sociedade. Mas é também uma lição de independência e desprendimento num país viciado em cunhas e favores.
Já foi tudo dito e, no entanto, não posso senão escrever sobre Belmiro de Azevedo. Há pudor em elogiar-se um patrão: ou estamos a dar graxa ou a pormo-nos em bicos dos pés. Mesmo assim, aqui vai.
Há muitos anos que olho para o investimento da Sonae no PÚBLICO como um investimento no bem comum, uma acção filantrópica integrada na política de mecenato da empresa. Formalmente, não é esse o caso, mas na prática é esse o resultado.
Apesar de termos a Fundação Calouste Gulbenkian há décadas em Lisboa, foi em Nova Iorque, onde fui correspondente do PÚBLICO entre 1995 e 2000, que o mecenato deixou de ser uma coisa dos tempos dos Médicis e entrou, como uma luz quente, no meu dia-a-dia.
Não é possível dar-se um passo em Manhattan sem tropeçar em mecenas, pequenos, grandes e médios — há-os para todos os gostos. Os canteiros de flores da Avenida Madison foram construídos pelos moradores. As cadeiras do Met têm nas costas discretas chapas de cobre com os nomes dos “patrons” gravados. De dia, vamos à majestosa Biblioteca Pública, na 5ª Avenida, que nasceu por desejo testamentário de Samuel J. Tilden. À noite, vemos o NewsHour, o telejornal da PBS, e no fim aparecem os nomes dos 41 financiadores (este é o programa que diz aos jornalistas para se lembrarem de que não fazem parte do “entertainment business”). Uma vez por semana, também na PBS, temos o fantástico Frontline, programa de jornalismo de investigação e, no fim, vemos os nomes de John e Catherine MacArthur, das fundações Ford, Park, Heising-Simons, Jon L. Hagler e da família de John e Helen Glessner. Pelo meio, passamos pelo MoMA, fundado por três mulheres mecenas, ou pela Universidade Rockefeller, onde se faz da melhor investigação biomédica do mundo.
Sabemos pela História que o impacto dos grandes filantropos demora a ser reconhecido pelas massas. Quando desaparecem, há uma aura que fica na memória das elites, mas são necessárias duas ou três gerações para que a história da vida pública do mecenas que acaba de morrer se liberte do que, com o tempo, se revelará acessório. Desaparecidos os contemporâneos — que conhecem as virtudes, mas também os defeitos de quem morreu — fica a essência. E a essência é a filantropia.
Há uns anos, numa entrevista ao Diário Económico, Belmiro de Azevedo disse que “um empreendedor é uma pessoa que tem o vício de fazer coisas que nunca ninguém fez” e que o faz “por intuição, por ambição e por inspiração”. O PÚBLICO, claramente, nasceu deste vício. Em 2013, quando nos mudámos para Alcântara e Belmiro de Azevedo veio conhecer a nova redacção, espantou-nos, como sempre. Mal entrou, perguntou: “E o Cerejo, está cá hoje?” Fui procurá-lo, apresentei-os e Belmiro disse ao nosso colega qualquer coisa como: “Então, o que anda a tramar agora? Não deixe nunca de os chatear!”. De certa forma, essa é a síntese do que Belmiro de Azevedo representa para nós, jornalistas do PÚBLICO: o espírito combativo, independente e incómodo de um homem que criou — e acreditou e financiou com enormes prejuízos — o melhor jornal de Portugal e que, com isso, prestou um sério serviço público à democracia portuguesa. Isto pode parecer um cliché, mas foi exactamente isso que Belmiro de Azevedo fez. “Discreto e concreto”, como disse nesta quinta-feira o padre na missa em sua homenagem.
De tudo o que Belmiro de Azevedo fez, muito perdurará. Capital, trabalho, inovação. Mas o PÚBLICO é um caso à parte. É a sua coroa de “amor profundo pela humanidade”. Parece poesia pirosa, mas é esta a definição de “filantropia”. Ao manter o PÚBLICO vivo, Belmiro de Azevedo seguiu a bela e nobre tradição dos grandes mecenas: devolver à sociedade. Mas deu também uma lição de independência e desprendimento a um país viciado em cunhas e favores.