"Chegámos a um tempo em que o preservativo é um dos dispositivos de prevenção. Existem outros"
Infecciologista Kamal Mansinho diz que é preciso adaptar as campanhas e as mensagens à nova realidade do VIH. Hoje é Dia Mundial de Luta contra a Sida.
É infecciologista desde os anos em que os primeiros casos de VIH começaram a surgir em Portugal (início da década de 80 do século passado). Kamal Mansinho aponta vários factores que podem explicar por que razão a redução de novas infecções no país está a acontecer de forma mais lenta do que noutras partes da Europa. Defende que as mensagens de prevenção terão de se ajustar a uma nova realidade em que o preservativo já não é a única forma de prevenir a infecção.
Quais devem ser as mensagens para quebrar a transmissão do vírus VIH? A cura funcional passa por aí.
A cura funcional é aquela que temos hoje. O vírus não desapareceu, contínua em circulação em quantidades tão baixas que não causa danos ao organismo. Mas em algumas circunstâncias pode continuar a ser transmitido. Caso da pessoa infectada ou não infectada ter uma infecção sexualmente transmissível porque a inflamação que resulta da infecção facilita a transmissão. As mensagens de prevenção vão ter que se ajustar a estas realidades micro.
Esta semana a Direcção-Geral da Saúde publicou a norma de utilização da profilaxia pré-exposição (PrEP). Conclui-se que qualquer pessoa que tenha um comportamento de risco possa beneficiar da PrEP. É assim que deve ser?
Em abstracto é assim que deve ser. No concreto é preciso criar condições para operacionalizar e não facilitar sentimentos de falsa de segurança. A PrEP é um poderoso instrumento de prevenção de transmissão da infecção VIH. O ideal, e isso está contemplado no Programa Nacional para a Infecção por VIH, é que as pessoas que tenham indicação para fazer PrEP sejam previamente avaliadas e depois acompanhadas. O que queremos é que a pessoa não apanhe VIH e também não apanhe sífilis, gonorreia, outras infecções sexualmente transmissíveis. A operacionalização de uma estratégia deste tipo, que tem implicações muito significativas sobre a saúde pública, exige criarmos condições para termos uma boa capacidade de resposta.
Não é possível que a PrEP seja olhada como uma espécie de pílula do dia seguinte e aumente a desvalorização do preservativo? Embora em muitos casos este já não seja usado.
Tocou na questão certa quando diz que o preservativo em algumas circunstâncias não é muito usado. Apesar de haver dados de grandes grupos de estudo sobre o papel que a PrEP pode ter relativamente à maior ou menor adesão ao preservativo, a verdade é que não conseguimos separar, numa análise muito cuidada dos números, se há, de facto, um aumento objectivo da não utilização do preservativo quando se toma PrEP. Acho que a PrEP está muito estigmatizada. Quando falamos dela falamos do risco de não usar preservativo.
No passado não tínhamos uma solução para a questão da intimidade e da intromissão de uma pelicula de latex na relação entre duas pessoas. Hoje temos uma alternativa para discutir com cada doente. Do que tenho conhecimento, sobretudo por leitura, há pessoas que interromperam a PrEP, usaram preservativo e depois voltaram a usar PrEP. Outras optaram por usar as duas coisas. E há pessoas que optaram por usar preservativo e outras que, apesar de todas estas possibilidades, e estando infectadas, continuam a optar por não fazer nada. Vamos ter de olhar sem nenhum preconceito de juízo para todas estas realidades e construir soluções.
No caso dos não infectados, a PrEP pode levar a que as pessoas sejam menos conscientes dos seus comportamentos de risco? Ou iriam existir na mesma?
Isto leva-nos a pensar mais uma vez nas aprendizagens do passado. O que aprendemos é que uma mensagem construída para todos no limite acaba por não fazer eco a ninguém. Teremos que pensar em mensagens que possam ser mensuráveis do ponto de vista do seu impacto em termos de resultados para públicos-alvo, ainda que eles possam ser abrangentes. Há uma outra questão que não podemos perder de vista na construção da mensagem. A necessidade de prevenção, a representação de doença, o conhecimento sobre a terapêutica, os instrumentos de profilaxia do infectado e não infectado, tudo isto tem de ser construído pensando nestas realidades que são diferentes.
Vamos precisar, no futuro, de olhar para infecção por VIH à luz de algumas realidades que são novas e que nos obrigam ao exercício de desconstrução de algumas das mensagens que pareciam ser definitivas e muito efectivas. Houve um tempo em que, inadvertidamente, se passava a mensagem de que o preservativo era altamente eficaz e estava implícita a sua infabilidade. Evoluímos na semântica e passámos a dizer que não introduz risco zero. Agora, chegámos a um tempo em que o preservativo é um dos dispositivos de prevenção. Existem outros.
O facto de não haver o uso de preservativo não implica necessariamente um comportamento de risco, porque temos outras opções?
Exactamente. O que significa que nesta necessidade de integrar os instrumentos de prevenção, vamos passar por situações de algum conflito que é parecido, quando se fala da PrEP, com o conflito que em determinado momento surgiu quando apareceu a pílula. Perguntamos se não vai fazer com que os jovens sejam mais complacentes com o risco. Quando apareceu a pílula existiram discussões destas em relação às mulheres. É nessa dimensão que falo em desconstrução.
O número de novos casos de VIH em Portugal está a diminuir, mas menos do que a média europeia. Porquê?
Há vários factores que podem explicar esta redução paulatina em Portugal comparativamente aos outros países da Europa. Sabemos é que no país um pouco menos de 50% das pessoas que são novos diagnosticados chegam tarde ao sistema de saúde. Quanto mais tarde chega, mais tempo está com carga vírica detectável, desconhece a infecção e continua em risco de infectar os outros. É uma parte da explicação, mas não é toda.
Por outro lado sabemos que em algumas comunidades, por exemplo homens que praticam sexo com homens, o risco de transmissão tem vindo a aumentar, o que me parece que pode estar associado com a maior mobilidade e há novas subculturas que podem propiciar maior facilidade de propagação do vírus. Não sabemos qual a dimensão em Portugal, mas algumas subculturas de "chemsex" – que é a prática de sexo sob o efeito de substâncias psicoactivas – em programas de vários dias continuados constitui um risco, porque o que se sabe é que das pessoas participam neste tipo de eventos, umas sabem que estão infectadas outras não.
Há as questões relacionadas com doentes que abandonaram as consultas por um período relativamente prolongado e que estavam em muito baixo risco de transmissão e passaram a ser de alto risco. Não só do vírus VIH, mas em alguns casos de transmissão de VIH resistente a alguns medicamentos. É uma variável que teremos de prestar atenção. Até porque Portugal tem o compromisso de alcançar os 90-90-90 do programa da ONU Sida em 2020, para depois em 2030 a sida deixar de ser um problema de saúde pública enquanto doença.
Vamos conseguir?
Para controlar a propagação do VIH temos de ser capazes de controlar a chegada de novas infecções e quem está infectado tem de ter uma carga vírica abaixo do limiar de quantificação. Se conseguirmos encontrar esse equilíbrio estaremos no bom caminho para aspirar estas metas.
Esteve pouco tempo à frente do Programa Nacional para a Infecção por VIH. Por que é que saiu?
Saí por motivos familiares, questões relacionadas com doenças complicadas, o que me levou a pedir ao senhor ministro que me dispensasse dessa função. Foi uma das decisões mais dolorosas que tive de tomar porque também foi uma decisão muitíssimo ponderada para aceitar. Era preciso manter uma série de apoios que a minha retaguarda precisava. Aquela é uma função muito interessante e simultaneamente muito exigente e eu não estava em condições de poder estar à altura dessa resposta.