Um “mar novo” nunca navegado

Faculdade de Belas Artes do Porto mostra projecto com que Barata Feyo, João Andresen e Júlio Resende venceram em 1956 o concurso para o Monumento ao Infante, em Sagres. Um projecto que não chegou a sair do estirador e que seria substituído pelo Padrão dos Descobrimentos… em Lisboa.

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Júlio Resende desenhou o mural para a cúpula da cripta Nelson Garrido
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Exposição inclui documentos sobre os estudos do LNEC Nelson Garrido
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A escultura que Barata Feyo fez do Infante teria 16 metros de altura Nelson Garrido
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Fotomontagem de Teófilo Rego DR
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Fotomontagem de Teófilo Rego DR
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Representação da cripta, de João Andresen DR
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Estudo para o tecto da cripta Teófilo Rego
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Estudo para o tecto da cripta, Júlio Resende DR
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Estudo para o tecto da cripta, Júlio Resende DR
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Pormenor do mosaico de Júlio Resende Teófilo Rego
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Sophia de Mello Breyner Andresen Adriano Miranda

“Nenhuma ausência em ti cais da partida./ Movimento ritual, surdo rumor de búzios,/ Alegria de ir ver o êxtase do mar/ Com suas ondas-cães, seus cavalos,/ Suas crinas de vento, seus colares de espuma,/ Seus gritos, seus perigos, seus abismos de fogo.”
Sophia de Mello Breyner Andresen

Até agora, só conhecíamos aquilo que poderia ter sido uma das mais marcantes peças de arte pública do país por documentação dispersa, uma ou outra peça mostrada aqui e ali, e por estes versos de Sophia. Hoje podemos ver mais de perto aquilo que seria o grande monumento dedicado ao Infante D. Henrique (1394-1460) e projectado para o promontório de Sagres em meados do século XX numa exposição na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP).

Intitulada Mar Novo, a exposição, que estará patente até 3 de Março, repete o nome do projecto apresentado a concurso em 1956, e que foi também o nome do livro onde Sophia incluiu a sua leitura de um sonho que fora projectado pelo seu irmão João Andresen (1920-1967), arquitecto, pelo escultor Salvador Barata Feyo (1899-1990) e pelo pintor Júlio Resende (1917-2011).

Os três artistas da Escola do Porto, com o apoio de engenheiros do LNEC, constituíram uma das 49 equipas participantes no concurso internacional lançado em 1954 pelo Estado Novo tendo em vista a construção de um Monumento ao Infante, que abrilhantasse, no lugar mítico de Sagres, as comemorações do V Centenário da Morte de D. Henrique, em 1960.

Sem que se conheçam as razões da decisão, o Governo de Salazar deixou cair esse projecto, e substituiu-o pela recuperação e transformação em pedra da escultura efémera que Leopoldo de Almeida tinha desenhado, duas décadas antes, para a Exposição do Mundo Português (1940), em Lisboa – o Padrão dos Descobrimentos.

Foi em reacção a esta decisão, nunca verdadeiramente explicada, que o historiador e crítico de arte José-Augusto França, num artigo de jornal em Março de 1957, lamentou a perda dessa "primeira oportunidade de haver em Portugal uma amostra de arquitectura viva, honrada e actual", e que Sophia escreveu o Poema inspirado nos painéis que Júlio Resende desenhou para o monumento que devia ser construído em Sagres.

“Não se conhecendo as razões oficiais para a desistência, creio que elas terão estado relacionadas tanto com as pressões centralistas para se investir num monumento em Lisboa como com a difícil relação custo-benefício que a construção do projecto Mar Novo num lugar tão recôndito como Sagres então teria”, diz ao PÚBLICO Lúcia Almeida Matos, curadora da exposição na FBAUP, integrada nas comemorações do centenário de Júlio Resende.

A mostra Mar Novo concretiza um projecto já antigo desta historiadora de arte, que teve conhecimento dos sucessivos episódios em volta da construção de um Monumento ao Infante quando fez a sua tese de doutoramento sobre a Escultura em Portugal no Século XX (1910-1969), posteriormente publicada pela Fundação Gulbenkian e pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (2007).

Neste trabalho, Lúcia Almeida Matos recorda que o concurso de 1954 era já o terceiro que o Estado Novo lançava com o mesmo objectivo, depois dos realizados na década de 30: o primeiro fora vencido por Rebelo de Andrade (arquitecto) e Rui Gameiro (escultor); o segundo, pelo arquitecto Carlos Ramos, Almada Negreiros e o já citado Leopoldo de Almeida. Nenhum deles passara também do papel e do estirador.

Colaboração das artes

Ainda que seguindo algumas linhas que já então pontuavam as encomendas escultóricas de grande ambição no país, Mar Novo é de algum modo um projecto pioneiro na “colaboração das três artes – arquitectura, escultura, pintura – como um esforço consciente para atingir um efeito visual coerente”, nota Lúcia Almeida Matos, directora do museu da FBAUP.

Curiosidade histórica é também o facto de a presente exposição ser apresentada na mesma sala onde em 1956, na 5.ª Exposição Magna das Belas Artes do Porto, foi mostrado o projecto vencedor do concurso, e que na altura foi também visto, disse João Andresen, como “uma grande vitória para a [nossa] Escola”.

“Além desta feliz circunstância simbólica, quisemos na exposição criar um ambiente sugestivo, que se aproximasse da situação de uma obra em processo, e que respondesse também à memória descritiva do projecto, mesmo se ele tem um carácter um pouco hiperbólico”, nota a curadora.

A disposição cénica das peças, as cores, a luz e as projecções que agora reconstituem Mar Novo remetem-nos, de facto, para essa “história de pasmar” com que os autores do projecto conquistaram o júri do concurso de 1956. À entrada, uma fotografia de Teófilo Rego (1914-1993) documenta a exposição realizada nesse ano na Exposição Magna promovida por Carlos Ramos, o grande artífice das medidas que, nessa década de 50, criaram a fama da Escola do Porto.

Ao longo das paredes, novas fotografias de Rego – cujo espólio, reunido na Casa da Imagem, em Gaia, foi fundamental para a reconstituição do projecto – e fotomontagens feitas a partir dos estudos originais dos três artistas dão a conhecer as várias fases e faces do monumento.

Organizado em três praças e distendido por um percurso de cerca de um quilómetro ao longo do promontório, Mar Novo começava com uma caravela numa rosa-dos-ventos a evocar a História Trágico-Marítima e terminava com “o vulto grandioso do Infante” (16 metros de altura) esculpido por Barata Feyo. Mas o núcleo central do monumento era uma cripta escavada no solo, que acolheria um museu com uma sala do Mundo Revelado pelos Descobrimentos portugueses, e também um altar e uma biblioteca.

Foi para este espaço que Júlio Resende criou “uma das maiores decorações murais [então] existentes no mundo”, com um mosaico vidrado com 1600 m2, como se pode ler na memória descritiva.

Nesta exposição, cortesia do Lugar do Desenho/Fundação Júlio Resende, e também de coleccionadores privados, além de instituições como o LNEC – e a amostragem das máquinas e testes então realizados por este laboratório será uma das sua principais mais-valias –, podem admirar-se os estudos, em originais e reproduções fotográficas, realizados pelo pintor da Ribeira Negra. E também uma maqueta em bronze (escala 1/1000) da estátua do Infante – da qual, após ter fracassado o projecto Mar Novo, Barata Feyo fez uma versão adaptada para uma praça de Brasília.

Projectada num dos cantos da sala encontra-se o estudo para a decoração da abóbada, com o mural a evocar a epopeia dos portugueses neste monumento que, segundo os seus autores, teria o valor de “uma síntese plástica das Descobertas (…), um gesto circular e ascensional, que nascendo da Terra tão portuguesa de Sagres desaparece no Céu”.

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