Vertigo

Jornalista de profissão, Osório fugiu da “realidade” jornalística”, deu largas à imaginação e coloca questões de carácter universal.

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Osório esgrime com autoridade e destreza a estreita ligação entre o cinema e a psicanálise, aplicando-a à literatura Rodrigo Cabrita

No primeiro capítulo de A Queda de um Homem, uma mulher jaz, confinada a um leito, incapaz de se mover, irremediavelmente presa. A doença não lhe permite aspirar a uma existência “normal”. E, assim, escreve romances delirantes, dentro da sua cabeça. Não está só, antes estivesse! Tem uma família, mãe, pai, um tio e um primo, homem poderoso, mediático, imponente. Um ser perigoso, omnipresente, ditatorial. A sua nemesis.

A mulher aspira à liberdade, procura-a na sua mente, no seu espírito, nos seus sonhos, através das ficções que cria, obsessivamente. Nesse espaço “virtual” encontra e enfrenta os seus próprios demónios, na figura desse primo, simultaneamente sedutor e repulsivo. Trata-se de um homem que, logo no segundo capítulo, açambarca a acção. Não possui nome mas tem tudo: mulher, filha, cão, riqueza, influência, uma erudição extraordinária, o conhecimento profundo da cultura, das tramas sociais. Conhece o mundo inteiro, as políticas dos povos, os segredos e as traições. Tal como Ícaro, sobe tão alto, aspira a tanto, que acaba por cair. A sua ascensão conhece uma reviravolta surpreendente. Um estranho oferece-lhe persuasivamente um bilhete de comboio. A viagem será só de ida.

E o homem sem nome embarca nessa viagem vertiginosa e fatal.

A partir destes pressupostos, Luís Osório compõe uma narrativa complexa, feita de realidade (a história passada, a memória das personagens) e de uma ficção com características oníricas. 

Toda a narrativa de A Queda de um Homem remete para uma interrogação filosófica sobre a essência e o significado da existência, o que fazer nos relacionamentos, como remediar (ou evitar) os erros, como controlar (ou não) os nossos actos. A viagem alucinatória das personagens serve de metáfora para todo este processo, ao qual não falta uma poderosa componente visual, cinematográfica. Osório esgrime com autoridade e destreza a estreita ligação entre o cinema e a psicanálise, aplicando-a à literatura. Não é por acaso que a ideia do comboio está associada a, por exemplo, Alfred Hitchcock que, como ninguém, imprimiu as noções de ansiedade, de insegurança, de impossibilidade de fuga — repare-se na maquinaria, na velocidade, na relação espaço/tempo — às suas histórias. Sabe-se também que Freud tinha pavor a viagens de comboio que ele relacionava com o irreprimível desejo sexual que terminava, inevitavelmente no orgasmo, ou seja na chamada “pequena morte”. Também aqui, neste livro, existe essa pulsão fantasmagórica e escatológica.

A Queda de um Homem é uma tentativa de resposta a questões prementes da vivência humana, através de um hábil exercício de escrita que exige do leitor uma mente curiosa e aberta. As personagens não carregam consigo o peso da identidade definida por um nome, nem, tão pouco, possuem características físicas pormenorizadas; estas são delineadas através de condições específicas — a fraqueza ou a fortaleza, a força ou a fragilidade, a imobilidade ou a mobilidade. Tal como a maior parte dos seres humanos estão limitadas por algo, em prisões reais ou imaginárias, físicas ou mentais, sociais ou privadas. Nesse espaço fluído, escorregadio, mutável e impreciso colocam todas as indecisões e certezas, vitórias e derrotas, desejo e frustração. Ninguém é totalmente livre, mas ninguém é totalmente prisioneiro ou escravo. As imposições de poder só têm efeito quando se deixa de exercitar a imaginação. Luís Osório compõe um texto feito de sonhos, diálogos, citações — com especial destaque para o evidente fascínio por poetas como Pound e Yeats – memórias e divagações com um pendor de desespero que se aproxima da vertigem.

Este romance explora, ainda, o processo de escrita, essa capacidade de experimentar outras vivências, outras experiências; e, na sua estrutura, afasta-se deliberadamente de um modelo convencional — aproximando-se, por exemplo, do de um autor como Gonçalo M. Tavares — para avançar numa progressão de suspense (a que não falta elementos de gore), como se se tratasse de um videojogo, no qual várias etapas têm, forçosamente de ser ultrapassadas sem um fim claro, ou redentor, à vista. 

Jornalista de profissão, Osório afirmou, numa entrevista, que a escrita deste primeiro romance lhe permitiu um verdadeiro “mergulho para dentro de si próprio” e uma fuga à “realidade” jornalística”, o que lhe permitiu dar largas à imaginação e colocar questões de carácter universal.

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