Catalunha: como é que tudo isto aconteceu?
Os líderes independentistas perderam o contacto com a realidade e acabaram isolados.
Durante anos os nacionalistas catalães, como Jordi Pujol ou Artur Mas, não queriam a independência, queriam apenas o independentismo. O “Estado catalão” era um horizonte longínquo. O independentismo servia para valorizar o seu capital de queixa e obter concessões de Madrid. A crise de 2008 começou a mudar as coisas. Acossado pelo descontentamento social, o nacionalismo conseguiu juntar todas as frustrações sob o tema unificador da independência. O independentismo ganhou uma força que muitos consideraram irresistível. A ilusão pouco durou. Antes de pensar nas eleições de 21 de Dezembro, importa questionarmo-nos quanto ao ponto decisivo: como é que tudo isto pôde acontecer?
A declaração unilateral de independência (DUI) foi feita no dia 27 de Outubro. O Governo espanhol respondeu com o Artigo 155. Em poucas horas tudo se desmoronou. Os consellers (membros do govern) foram detidos ou fugiram para Bruxelas. Não houve “resistência de massas”. Todo o espectro político catalão aceitou a legalidade constitucional. Carles Puigdemont (no “exílio”) e Oriol Junqueras (na prisão) reconheceram o seu fracasso ao apresentarem-se às eleições convocadas para 21 de Dezembro, não pelo presidente da Generalitat, mas nos termos do 155. Carme Forcadell, ícone do independentismo e presidente do parlement, renunciou à “via unilateral”.
Quem enganou quem?
Os líderes independentistas têm um problema: como explicar que se enganaram ou que enganaram as bases? Muitos sublinham que não havia “uma maioria social”. A Esquerda Republicana da Catalunha (ERC) reconhece que o govern não estava “suficientemente preparado” para a república e para enfrentar “um Estado autoritário sem limites para aplicar a violência”. Todos sonhavam com o apoio da Europa. E não havia “plano B”. Marta Rovira, da ERC, regressa ao classicismo e culpa Madrid: diz que o Governo espanhol ameaçou Puigdemont de que “enviaria o Exército e haveria mortos nas ruas”. Foi desmentida pelos que, nesses dias, fizeram de mediadores entre Barcelona e Madrid.
Toni Comin, conseller da Saúde e refugiado em Bruxelas, tem uma versão mais interessante: o independentismo ignorou as vozes que alertavam “sobre a repressão do Estado” e avisavam “que os governos europeus não reconheceriam a DUI na manhã seguinte”, porque preferiram “escutar a parte mais épica da narrativa, a mais emocionante e a mais bonita”.
Escrevia ontem no La Vanguardia Durán Lleida, figura de proa do nacionalismo moderado catalão: “O independentismo instalou-se durante muito tempo na ficção. Acreditaram na sua fantasiosa e mágica realidade e inculcaram numa parte importante da sociedade as suas próprias mentiras.”
Temos muitas narrativas da imprensa catalã sobre os dias 26 e 27 de Outubro. Sigo a versão do intelectual independentista Jordi Graupera (El Nacional.cat, 10/11/17). O seu tema é a crítica da proposta de uma lista unitária para as eleições de 21 de Dezembro. Para argumentar regressa ao passado. Lembre-se que as eleições de 2015 foram ganhas por uma “coligação de rivais”, Juntos pelo Sim, reunindo o Partido Democrata Europeu Catalão (PDeCAT), de Artur Mas, e a ERC, de Oriol Junqueras.
O jogo da galinha
Escreve Graupera que, ao longo da Primavera de 2017, quase nada foi feito para preparar as estruturas de um Estado. Todos estavam convencidos de que “o Governo espanhol não permitiria o referendo”. Assim, perante a impossibilidade de fazer o referendo, “a culpa seria do Estado e o PDeCAT e a ERC poderiam concorrer a eleições, afirmando que tinham feito o possível para o realizar”. “E teríamos segundas [eleições] plebiscitárias.” A partir daí, todos os esforços da Generalitat se centraram na preparação do referendo. “O importante era que o outro partido da coligação não te pudesse culpar por não teres feito nada.”
Depois do referendo, quando chegou a hora da decisão, os dirigentes reconheciam — nas chamadas telefónicas agora conhecidas — que nada estava pronto ou previsto. Sobre quem recairia a responsabilidade? Instalou-se o chamado “jogo da galinha” — aquele em que dois carros correm para o abismo e perde o condutor que salta primeiro do assento. Junqueras estava seguro de que “o PDeCAT saltaria antes do carro chegar ao abismo. Por sua vez, o PDeCAT esperava que ficasse patente a incompetência de Junqueras”, o responsável pela Economia. “Estes males derivavam da lista unitária que tornava impossível apresentar divergências em público.”
Afinal, nenhum saltou do carro e todos se precipitaram no abismo. Mas Graupera não conta a história toda. No dia 26, depois de intensos contactos com Madrid, Puigdemont estava prestes a suspender a DUI e convocar eleições antecipadas. Junqueras ameaçou sair do govern. O president começou a receber tweets acusando-o de traição. Ou de Judas: “155 moedas de prata” — num tweet enviado por Gabriel Rufián, chefe da bancada da ERC no Congresso. Assustava-o também a rápida mobilização de independentistas que exigiam a DUI. Puigdemont recuou e respondeu a Junqueras passando a decisão ao parlament. Em privado, Junqueras mostrava-se céptico. Mas, na implacável luta em curso pela hegemonia do campo nacionalista, não podia desiludir as massas que ajudou a radicalizar e acreditavam na ficção de que fala Durán Lleida.
Graupera é um ideólogo independentista que, perante o êxito do referendo, passou a exigir a declaração imediata da independência, argumentando que a repressão espanhola “legitima por si mesma a secessão”. Apostava nas virtudes da brutalidade espanhola: a DUI e a repressão levariam a uma situação insuportável para a Europa que faria ceder Madrid. Ele acreditava mesmo nas suas palavras (ver “10 respuestas sobre la Declaración de Independencia”, El Nacional.cat, 8/10/17).
As análises mais realistas dizem que o independentismo conseguiu uma alta mobilização com a postura maximalista. Mas, ao polarizar a sociedade ao extremo, foi perdendo aliados e apoios. Tornou-se imune a qualquer tipo de crítica ou divergência, deixou de saber fazer compromissos, enfim, perdeu o contacto com a realidade.
As eleições de Dezembro não são apenas uma competição entre independentistas e unionistas. Servirão também para verificar se os independentistas são capazes de tirar conclusões da sua derrota, de inventar um outro enredo ou se resignam à vitimização. E ainda para saber quem, no campo nacionalista, ganhará a hegemonia.