Quando os directores das escolas têm de fazer de polícia das cantinas
De peixe não gostam. A carne é pouca. O arroz está cru. A fruta é sempre a mesma. Almoçar em cantinas escolares não é sempre igual. E não é fácil. Alunos queixam-se nas redes sociais. Directores de escolas têm de vigiar refeitórios. Deve a gestão ser privada ou feita pelo Estado?
O espaço é rodeado de portas em vidro, há mesas corridas, suficientes para alunos de várias turmas comerem. Mas hoje a cantina da Escola Secundária de Fonseca Benevides, em Lisboa (Alcântara) está praticamente vazia. Apenas alguns alunos sentados a almoçar e muitos trouxeram as marmitas de casa, almoçam pizza ou massa com frango.
Quando há quatro anos João Santos assumiu o cargo de director da Escola Secundária de Fonseca Benevides fez da alimentação um dos seus grandes pilares. “Eles têm de poder comer no refeitório. Há miúdos que a única refeição do dia que têm é esta”, explica, porque cerca de 60% dos seus alunos estão no escalão de Acção Social mais baixo.
Começamos a circular entre as mesas, de nariz e olhos postos nos pratos dos jovens. Na maioria dos pratos dos que escolheram o menu escolar há batatas cozidas, com batatas cozidas. E com batatas cozidas.
Poucos têm salada ou legumes (brócolos e couve-flor). Nada de peixe. Hoje é arinca às postas (bem secas, provámos) no forno. João Santos já sabia que a fotografia iria ser esta. De dois em dois dias há peixe no menu. Aí os alunos ou não comem ou então protestam.
Com o prato à frente, o director da escola conta que todos os dias almoça no refeitório. “Aprendemos uma quantidade enorme de novos peixes”, ironiza, para dizer que há muita variedade introduzida por causa do baixo preço. Dá nota positiva à sopa de alho francês (com mais batata do que qualquer outro legume), à salada (de couve roxa, cenoura e pepino) e menos pontuação aos legumes. Chumba o peixe.
Desde Setembro que todas as escolas geridas pelo Ministério da Educação (ME) têm uma ementa pré-definida para o ano lectivo inteiro. Elaborada pela Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGEstE), com supervisão de nutricionistas, define combinações de ingredientes. No dia anterior, terça-feira, o menu era frango assado com arroz de cenoura.
João Santos foi um dos que mais falou numa reunião da DGEstE, em Lisboa, com directores de escola, organizada esta segunda-feira. “As coisas acabam por correr bem aqui. Mas o principal problema é que é preciso fazer de polícia todos os dias”, queixa-se. “O produto que vem é de má qualidade, tentam não respeitar as quantidades. É suposto servir-se vitela e servem chambão, a parte pior”, queixa-se.
Foi isso que relatou na reunião com a DGEstE, uma das várias iniciativas ministeriais enquadradas no plano de monitorização e fiscalização da qualidade e quantidade das refeições nas escolas públicas. Fez parte de um pacote de encontros que começaram na semana passada no Alentejo e vão correr o país, liderados pela Directora-Geral dos Estabelecimentos Escolares com directores de escolas públicas e representantes das empresas que fornecem as refeições escolares.
ASAE com 20 processos-crime em três anos
O tema das cantinas tem estado nas notícias desde o início do ano lectivo, depois de uma série de queixas de alunos, que publicaram fotografias nas redes sociais a reclamar de lagartas a andar no prato, frango cru, e de direcções de escolas terem sido acusadas de mover processos disciplinares contra eles por causa disso – o ME diz que há "apenas registo de dois processos disciplinares", que não incluem o caso da lagarta, e que "não tiveram a ver com fotografias tiradas a refeições em exclusivo mas com acumulação de infrações por parte dos alunos".
Nesse encontro estiveram representantes das empresas que fornecem as refeições. A maioria das cantinas do ministério é explorada por duas empresas, a Uniself e a ICA. Depois de um concurso público deste ano, a Uniself ficou com metade dos 1148 refeitórios do ME, além de gerir mais 230 cantinas escolares de responsabilidade autárquica. É esta empresa que tem estado no foco das críticas: de 70 queixas recebidas pelo ME de Setembro até 20 de Outubro, 56 são das suas cantinas.
Mas em entrevista por email ao PÚBLICO, Mateus da Silva Alves, presidente do conselho de administração da empresa, responde: “Nestes três meses [lectivos] foram registadas 163 reclamações para uma média mensal de 3,5 milhões de refeições distribuídas. Estamos a analisar as reclamações e a proceder, se for caso disso, às consequentes correcções, porque trabalhamos diariamente para que este número diminua.” (ver resposta aqui)
Na reunião, aos directores das escolas foi dito que estivessem em cima da avaliação e que mantivessem “um sistema de reporte rigoroso e activo”. É o que João Santos faz diariamente. À cantina fornecida pela Uniself acontece chegarem hambúrgueres de 60 gramas quando o estipulado é de 80 gramas, por exemplo. Ou usarem-se flocos de batata na sopa. “Acontece se não se estiver a vigiar. Um director de escola não tem que andar a policiar a comida, eu não tinha nada que estar a fazer isto”, acrescenta. Desde Setembro apresentou nove queixas.
Mas os incidentes com a comida das escolas estão longe de ser recentes. Desde 1 de Janeiro de 2015 e até agora a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) instaurou 20 processos-crime em cantinas escolares (por géneros alimentícios corruptos e avariados, por fraude sobre mercadorias e por corrupção de substâncias alimentares) e suspendeu a actividade em 13 estabelecimentos. De uma fiscalização a 800 escolas, resultaram 228 processos de contraordenação na área da restauração.
De resto, a Federação Regional de Lisboa das Associações de Pais tem aconselhado a apresentação de queixa. O presidente Isidoro Roque diz: “Queremos a responsabilização de quem tem que ser responsável: as empresas e quem fiscaliza a refeição”.
Gestão própria com mais sabor
De volta à Fonseca Benevides: uma vez por semana chega a comida, com carne e peixe congelados. Um dia antes, os alunos compram as senhas de almoço por preço que varia de acordo com o escalão de Acção Social e da região do país – entre zero e 1,46 euros pelo menu de sopa, pão, prato com salada e uma peça de fruta.
Peixe é algo que Evandro Cidário, aluno do 11º ano, nunca come. O resto “é razoável”, diz, sentado ao lado de outro colega de 16 anos que não gosta daquela comida.
Um dos temas que se tem debatido é se as escolas deveriam seguir o modelo de gestão directa dos seus refeitórios, com alguns partidos da Esquerda a defenderem-no (ver texto). João Santos acredita que isso seria “mais fácil” até porque a escola não tem a pressão do lucro.
Da sua experiência, Manuel Pereira, da Associação Nacional de Dirigentes Escolares (ANDE), acha que as escolas que têm a gestão das suas cantinas oferecem “um melhor serviço”. “Na minha cantina [de gestão directa, do agrupamento de Escolas de Cinfães] conseguimos fazer refeições dentro do recomendado e saborosas. Só usamos peixe fresco, fruta de qualidade, fazemos refeições próximas do que se come em casa. Já as empresas fazem refeições para cumprir as quantidades: nós damos resposta a outros factores como a visão, o cheiro e o gosto.”
Manuel Pereira acha que há vantagens em ter cantinas geridas pelas escolas, até porque a grande maioria tem cozinhas montadas.
O tema não é consensual entre os directores de escola. Com dois mil alunos na escola sede, e fila de alunos à espera do frango com arroz de cenoura – um dos pratos que tem mais saída –, o director do agrupamento de escolas de Carcavelos Adelino Calado discorda da hipótese de gerir as “suas” cantinas. Defende que isso lhes traria muito mais trabalho por causa da burocracia exigida.
Servem uma média de entre 300 a 400 refeições diárias, pode subir até às 600 quando é carne. “Esta cozinha é melhor que a dos hotéis”, afirma na terça-feira, enquanto mostra de fora os equipamentos.
Pouca quantidade, reclamam
No recreio, os alunos brincam. Na cantina há burburinho. Não tem havido muitas queixas. “Houve algumas, mas eram ridículas”, refere o director. “Estava insonso, estava salgado, era muita comida….”. Adelino Calado explica que muito depende do cozinheiro. “Quando é bom não há reclamações. Pode haver queixas em relação à quantidade. Dizemos para servirem pouco mas se o aluno quiser repetir, repete.”
Numa ronda pelas mesas da cantina é de facto esta uma das queixas mais frequentes: a quantidade. Olhando o prato com arroz (que provámos e estava cru) o pequeno pedaço de frango parece pouco para satisfazer o apetite de um adolescente.
“Às vezes a comida vem fria”, “há peixe a mais”, “a sopa devia ser passada”, “a comida de casa é melhor para a minha saúde”, “não há variedade, é sempre maçã e pêra, e eu trago morangos, melão…”. Júlia, Catarina e Matilde, do 5º ano, enumeram as razões pelas quais trazem de casa a marmita.
Também reclamam da fila demorar tanto a ser servida que as fez atrasar para as aulas. De facto, outra das queixas que têm chegado ao Ministério é justamente a falta de pessoal no serviço de refeitório, da responsabilidade da empresa.
É isso que nota Álvaro Miguel, cozinheiro da Escola do 1º Ciclo dos Lombos, com 130 alunos – esta gerida pela autarquia de Cascais, que tem contrato com a mesma empresa. Da sua cozinha, paredes meias com a sala de refeições onde as crianças se sentam em mesas adequadas à sua altura, confecciona mais de 1100 refeições por dia, que serão distribuídas para outras escolas. Mas tem a apoiá-lo apenas três pessoas.
“Houve mudança na ementa”, comenta Maria do Rosário Antunes, adjunta da direcção do agrupamento de Carcavelos para o primeiro ciclo e pré-escolar, e que é uma das responsáveis pela avaliação. “Eram filetes de pescada, mas estão aqui rolos”. O grande problema, enumera, são atrasos no transporte das refeições, ou faltas de alimentos como carne ou peixe.
Pedro Guedes Pinto, da Associação de Pais deste agrupamento, diz que as queixas sobre as cantinas nunca foram tantas. “O que me parece é que este tipo de contrato [por concurso e com tantos refeitórios] coloca um problema: se o fornecedor não cumpre é muito difícil substituir.”
Se a gestão própria é mais eficaz será um debate a continuar. De Cinfães, o presidente da ANDE lembra: “A sensação que temos é que as nossas cantinas estão mais próximas da realidade dos alunos. Não posso dar uma refeição igual numa aldeia da que dou nas cidades. É preciso personalizar em função do ambiente social em que a escola está inscrita.”